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domingo, 25 de junho de 2023

A SOCIEDADE BRASILEIRA AINDA É A MESMA DOS ANOS DE CHUMBO

 É perda de tempo, desperdício de energia, burrice discutir, debater ou tentar argumentar com um bolsominion. Vários analistas já disseram e repisaram que Bolsonaro não criou o bolsonarismo: o extremismo de direita já estava arraigado, latente, pulsante numa parcela altamente significativa da sociedade brasileira.  O capitão expulso do Exército só foi o abre-alas, o escancarar das porteiras para essa gente liberar, dançar, bradar e praticar toda a sua sordidez, perversidade, injustiça e cinismo tão peculiares.  Ou acaso algum maior de sessenta não se lembra de que, nos tempos da ditadura, muitos pais e avós rememoravam o fatídico dia do famigerado  golpe com uma alegria de debutante, deliciando-se da lembrança do momento em que Mourão Filho, Magalhães Pinto e outros golpistas colocaram seus meganhas armados até os dentes em marcha? 

Após o maldito evento, era muito comum, já no auge da era da repressão, observarem que "fora a melhor coisa acontecida, porque era mister acabar com aquela 'patifaria' de greves, manifestações, 'arruaças'", tudo reações legítimas de cidadãos por qualquer motivo insatisfeitos com a própria condição social e o total desprezo dos patrões e setores públicos para suas causas.

O falso moralismo tomou conta das famílias e da mídia.  Não podia haver triângulo amoroso nas telenovelas, a produção musical foi objeto de severíssima censura.  Afinal o regime se fingia muito voltado para o bem-estar da família, e o contexto era inspirado na "marcha da família com Deus, pela liberdade" (marcha, aliás, da qual Deus esteve absolutamnte ausente), em que a classe média, imbecil como sempre foi e será, deu as mãos às elites e se tocou pras ruas a defender a grande propriedade e os latifúndios, como se fora também rica (aliás, sentindo-se abastada), como se defendesse o que houvesse de mais justo e virtuoso, sem a menor consciência de que era um ente numeroso e rastaquera naquele movimento.

Lembro-me perfeitamente daqueles tempos de pós-1964, em que os casais pais de família ficavam de suas janelas de quarto escuro e cortina fechada a observar as filhas dos vizinhos que chegavam de carro com os respectivos namorados e com esses trocavam algumas carícias ousadas.  Era depois uma série de comentários à boca-pequena, que só perdiam força quando se tomava conhecimento de que alguma outra mocinha (ou aquela mesma) era descabaçada.  Virge! Nossas "impolutas" famílias se lambuzavam com aquele prato delicioso como o próprio manjar dos deuses.  Era fato, entretanto, que aqueles verdadeiros sentinelas da moralidade, quando estavam ainda habilitados para o pecado, tinham lá, marido e mulher, suas amantes e seus amantes, muitas das vezes os homens deixando esposa e filhos carentes de coisas essenciais e básicas, já que gastavam muito com alguma outra mulher mais graciosa e com os abortos que tanto condenavam, mas praticavam em nome da preservação do sacrossanto ambiente familiar.  Quando as respeitáveis senhoras casadas engravidavam de alguém que não fosse o marido, a solução era mais simples:  o cônjuge comemorava o nascimento da criança com um riso de orelha a orelha e muita cerveja, certo de ser seu o recém-nascido.  Afinal eram todos religiosos, tementes a Deus, pessoas de bem, e uma boa e grande mentira ia-lhes muito melhor do que uma verdade imoral.

Assim como hoje os predominantes protestantes renegam as seitas africanas, os predominantes católicos da época renegavam-nas como ao próprio Diabo, embora não fosse extremamente raro recorrerem aos orixás quando achavam que Deus e os santos do catolicismo estavam demorando a proporcionar-lhes prosperidade, a morte de algum desafeto ou a mulher ou homem de alguma outra criatura.  

O racismo e a homofobia eram declarados em alto e bom tom, apesar de muitos dos preconceituosos serem também mestiços e oportunamente se envolverem em carícias e atos sexuais com criaturas do mesmo sexo. As drogas também eram veemente condenadas e muito usadas.  Mas o que são pequenas contradições numa sociedade ciosa do seu dom religioso e dos seus deveres cívicos?  Havia filhinhos ordeiros de casais exemplares e bondosos que estupravam (e alguns até matavam) por aí, mas, se algo fosse descoberto, eram vistos com leniência pelas autoridades policiais e tomados como rapazes imaturos e peraltas, que ao amadurecer "tomariam jeito".   Aliás, essa coisa de estupro, tal como espancamento de mulher e feminicídio,  sempre foi cultural  por aqui, sem que muita gente se sentisse indignada  e revoltada com a incidência desses casos tanto ontem como hoje.

O único pecado capital, imperdoável, irreparável era a desobediência aos desígnios dos nossos senhores detentores do poder.  Nada de greves, manifestações, protestos, críticas aos militares, pois tais atitudes podiam culminar em prisão,  tortura e morte -- inclusive dos entes queridos dos torturados. Mas o que, segundo a visão da gente daquele tempo, que outro destino poderia merecer um "mau cidadão"?

O homem de bem era, antes de tudo, aquele que não proferisse nenhuma palavra ou praticasse qualquer ato contrário à ordem estabelecida.  Homens assim eram dotados de grande disciplina, grande caráter,  grande patriotismo, grande civismo.  Fica assim fácil entender porque a violência contra mulheres, negros, homossexuais era tratada com tanta condescendência.  A mentalidade da sociedade, implicitamente, acolhia como uma espécie de recreação de uma população bem-comportada essa gama de crimes revoltantes e deploráveis que mencionei.

Ah! Quase me esqueci de comentar que aquelas famílias de bem se metiam em muitas falcatruas também.  Havia muita corrupção naquele verdadeiro império da mais absoluta decência.

Ao final da ditadura militar, quando Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral e, ante seu impedimento por morte, José Sarney, civil, tomou posse,  achei que caminharíamos indefinidamente dentro de um Estado Democrático de Direito.  Em 2017, quando Bolsonaro anunciou sua candidatura à Presidência da República, achei que não teria ele a menor chance, pois pensava aqui comigo que, 32 anos depois da redemocratização, as viúvas da ditadura, do extremismo de direita e do regime de exceção estivessem em sua absoluta maioria mortas.  Meu erro crasso foi não contar que esses saudosistas tivessem deixado vivo seu pensamento torpe, cruel, calhorda e cínico, como um ser que espalha excrementos por onde anda, que inocula micro-organismos nocivos em toda corrente sanguínea que encontra, e os seus filhos e netos são a sua mais perfeita reprodução e reencarnação... reprodução e reencarnação de criaturas que não deveriam sequer ter nascido.

Bolsonaro perdeu a eleição presidencial, mas a direita e extrema-direita lotaram o Congresso Nacional, as regiões do Brasil, à exceção do Nordeste, estão contaminadas pelo pensamento extremista de direita, e os ataques aos negros, mulheres, homoafetivos, umbandistas, candomblecistas, os achaques de autoridades e políticos, os estupros, violência de todo gênero, além de as elites permanecerem no memso processo de usurpar tudo das classes menos favorecidas.  As pessoas não mudaram nada! O Brasil não mudou nada!  E ainda vive perturbado e amedrontado pelo fantasma do nazifascismo que não para de nos rondar.

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