1
Quando Michele viu o apartamento, deslumbrou-se e fez-se quase histriônica. Três quartos, uma suíte, um banheiro social, dependências de empregada, visão plena da rua. Circulou duas vezes por todos os cômados, voltou-se para os amigos:
--Aprovado?
Gabriel anuiu com a cabeça, também entusiasmado:
--Show! Gostei.
Raul também aprovou balançando a fronte. Sorriu:
--Bastante espaçoso. Gostei também.
Em poucos dias mudaram-se.
Naquele tempo podia-se procurar imóveis: não havia Covid-19, nem vivia-se o inferno de ter Bolsonaro na Presidência da República e a favor da pandemia. Hoje nada além da tragédia acontece no mundo, paralisado pela doença, à exceção, é claro, do Brasil, onde o mandatário todos os dias atenta contra a democracia.
Os três eram bancários, funcionários do mesmo banco e agência há quase seis anos. Michele estava pelos trinta e três de idade, Gabriel contava vinte e quatro Raul ia pelos cinquenta. A mulher e o mais jovem eram solteiros, Raul saíra alguns anos antes de um casamento que há muito o já havia cansado.
Michele era de personalidade marcante, determinada, extrovertida, alegre, dinâmica, bem-humorada. Gabriel tinha uma natureza parecida, mas trazia em si menos dinamismo, além de mostrar um jeito mais sereno. Raul era experiente, observador e dotado de menos alegria, mas interagia perfeitamente com os outros dois.
Eram amigos inseparáveis no trabalho, só se dispersavam quando algum dos três tinha um encontro amoroso ou visitava os parentes. Geralmente estavam juntos à noite, conversavam até tarde nos finais de semana, bebiam cerveja em trio e iam pelo meio da madrugada cada qual pro seu quarto.
O mundo de Michele destilava viveza. A mulher gostava de debruçar-se à janela, à espera do sono, e parecia que dentro dela a vida retumbava. Os carros passavam, seus olhos negros os seguiam, depois se perdiam na selva de concreto, nas luzes de artifício e nas cores da noite. Depois trancava a suíte, despia-se e deitava-se, esparramava-se na cama e dormia profundamente.
Gabriel roncava a solto, e o ronco atravessava o corredor e ia tocar de leve os ouvidos de Raul, que às vezes era insone e ficava a rememorar inúmeros maus e bons momentos da própria vida. Gabriel era cheio de sonhos, Raul não tinha ilusões. Ficava às vezes a refletir sobre o sentido ou não da vida, se havia ou não alguma razão em existir.
Imaginava Michele em seu quarto, nua, o corpo derramado de bruços sobre a cama. Jamais a mulher contara, mas os homens sabiam que dormia nua, por perspicácia, instinto e pelo fato de a moça não se preocupar em não deixar evidências. Nunca haviam antes morado juntos, e aquela nova situação, com a presença dela, por vezes excitava-os, cada qual solitário em seu quarto. Às vezes perdiam o sono e ficavam a olhar para o teto e para o nada, enquanto ela dormia numa paz de criança no berço.
Iam juntos à praia, bebiam nos bares e contavam anedotas e histórias engraçadas e alegres.
A solidão incomodara e corroera o mais velho, e isso fez que ele aceitasse a proposta dos outros dois de viverem juntos. Gabriel fora por querer experimentar a independência de não viver com os pais e irmãos, todos protestantes e de princípios severos, Michele porque os pais tentavam controlar seus horários e suas saídas. E assim, amigos verdadeiros, os três encontraram plena harmonia em viverem sob o mesmo teto. Eram como uma família.
Mas não eram irmãos.
Uma vez Gabriel tentou seduzi-la quando se viu sozinho com ela, após os dois beberem vinho. Notou que a mulher execedera-se um pouco e tentou levá-la para a cama. Michele riu-se, apertou-lhe o queixo com afabilidade, ironizou-o e fê-lo sentir-se uma criança. O rapaz foi dormir envergonhado.
No dia seguinte, ele queixou-se para Raul com certo gracejo:
--Todo muito aqui, sem nada pra fazer... Não custava nada dar um pouquinho pra gente.
Raul, por sua vez, em situação idêntica, à mesa com ela, olhou profundamente nos seus olhos e chegou a colocar uma das mãos sobre a dela. A mulher puxou a mão de baixo da dele e foi mais séria e incisiva:
--Perdoe, meu amigo, mas não quero esse tipo de relacionamento com você. Somos amigos, lembre-se. Lembre-se sempre disso.
Raul permaneceu calado, sisudo, entristecido, levantou-se e pediu licença para banhar-se e dormir.
Mas a mágoa ficou. Uma mistura de mágoa com uma coisa parecida com paixão. Michele era o seu poema, sempre o fora. Sempre a olhara com interesse, com um sentimento diferente de amizade. Ainda era casado quando sentira algo diverso por ela, quando encantara-se em ficar observando-a, como se bebera sua voz e seus gestos, seu jeito, seu andar, o desenho de seu corpo.
A recusa magoara Raul, e ele, sempre que não se via acompanhado de uma mulher, sofria por ela deitado em seu quarto, sozinho em suas noites insones. A amizade não ficou arranhada, mas o peito dele se apertava por ela. Não era amor, não era uma paixão avassaladora, mas era atração e encantamento, era uma coisa que o inquietava e entristecia.
Quando ela contava de um namorado, ele sentia um punhal ferindo-lhe a alma, uma coisa cortando dentro de si: uma melancolia, um desânimo, uma desesperança. Olhava-se no espelho e via-se um ancião pelos dezessete anos de diferença entre ambos. Doía-lhe saber que Michele não tinha interesse por homens mais velhos.
Ainda assim sentia-se de certo modo feliz quando coincidia os dois não saírem no fim de semana. Usufruía com gosto e prazer sua simples presença, como se de algum modo naqueles dias ela fosse dele.
Gabriel por sua vez continuou a tratá-la com a mesma deferência, a mesma alegria, com suas brincadeiras, suas chacotas, leve e livre de mágoas e ressentimentos.
2
O sábado de verão era claro e alegre. A praia estava cheia, e as banhistas passeavam e se bronzeavam, exibindo nádegas bonitas e douradas pelo sol, algumas depiladas, outras com pelos dourados e eriçados. Os olhos de Gabriel e Raul percorriam todas as mulheres de biquíni que circulavam ao alcance da vista.
--Esse tá supergelado! -- sorveu Michele o seu chope quase num só gole.
Raul provou a própria tulipa:
--Tá bom mesmo.
--Show! -- endossou Gabriel.
O mar batia, azul, azul... Os raios do sol encontravam as águas no horizonte, uma linha de sol espelhava e ofuscava os olhos de Michele, que colocou no rosto os óculos escuros.
--Tão bonito o mar... -- observava a mulher enquanto sacudia a cabeça e tirava os cabelos castanho-escuros dos ombros.
--Vamos dar um mergulho? -- propunha Gabriel.
-- Não tô a fim -- fez Raul um gesto vago.
Mas Michele aceitou, e os dois mergulharam, enquanto o mais velho sorvia a bebida e ficava a vê-la perder-se ao longe e sumir no meio das águas e da multidão. Uma mulher de biquíni muito ousado e seios e nádegas muito pronunciadas deu ao homem vontade de fazer amor, e este tirou o celular de sobre a mesa e fez uma ligação. Uma voz feminina atendeu do outro lado:
--Como tá a tua agenda hoje? -- indagou Raul com uma ponta de ironia.
--Vazia. -- ela sorriu do outro lado.
Também Raul abriu um leve sorriso:
--Tô na praia, mas posso te apanhar à noite.
--A que horas?
--Por volta das dez e meia?
--Acho que é um bom horário. Vou passar a tarde fazendo as unhas e os cabelos...
--Bom assim. -- chego da praia, tomo um banho, descanso um pouco...
--Pode ficar tranquilo: a noite é nossa.
--Beleza! -- exultou Raul.
Ela indagou de um jeito malicioso:
--Que roupa você quer que eu vista?
Ele abriu um riso com a mesma malícia:
--Quero aquele vestidinho vermelho de tecido fininho, aquele que mais parece uma lingerie.
--Vou usar...
--E aquela calcinha de rendinha... vermelhinha... aquela que é só um fiozinho...?
--Sim, meu taradinho... é ela que eu vou usar...
Logo os outros dois voltavam, sentavam-se à mesa, ele encerrava a ligação.
--O Gabriel gamou numa loura que tá debaixo de uma barraca azul e branca...
--Mas não falou com ela? -- quis saber Raul.
--Ela parece que nem me viu! -- justificou-se o rapaz com certa desolação.
Michele pediu outro chope, voltou-se para o amigo mais velho:
--A praia tem tanta vida...
O homem permaneceu calado, continuou ela:
--Aqui parece que a tristeza não cabe. Num lugar como esse a gente tem vontade de brincar, de dançar, de cantar.
O mais velho olhou ao redor:
--É contagiante...
--Dá um astral bom, não é? -- concordou Gabriel em sua juventude.
A moça mudava o assunto:
-- Tá faltando pouco pra minhas férias.
Raul interesssou-se:
--Vai tirar férias integrais?
--Vou -- ela confirmou.
--Vai viajar?
--Vou a Porto de Galinhas. Vou passar as férias na praia.
Ele fitou-a por alguns segundos, depois seu olhar se fez distante: toda vez em que ela viajava, o homem sentia um vazio profundo, como se não soubera viver sem os seus olhos e cabelos castanhos, sua pele morena-clara, seu sorriso espontâneo, sua segurança no modo de ser. A viveza que tinha no olhar e no riso, aquele gosto pleno e flagrante de viver.
Por momentos desejou ser mais jovem. Talvez assim a tivesse... Mas ficou a especular: tê-la-ia por algum tempo ou pra sempre? Se dava-se a ela a relacionamentos tão breves, se não mostrara por nenhum dos que a tiveram nenhum grande apego... seria ele apenas mais um? Quanto sofreria se um dia o abandonasse? Seria então mais feliz por não tê-la?
Gabriel tirou-o de suas pensamentos perguntando se queria mais um chope, Raul sorriu e fez um sinal afirmativo, e a tarde seguiu simplesmente.
3
Na madrugada após aquela tarde na praia, Raul não dormira como de praxe no motel com a mulher. No meio da noite os dois resolveram separar-se. O homem deixou a parceira em casa e partiu para o lar. Por volta das três e meia colocou a chave na fechadura, ouviu movimentos bruscos e tudo depois silenciar. Caminhou até a porta do quarto de Gabriel, viu que estava aberta, e o cômado, vazio. Entendeu que o que ouvira fora o susto e a surpresa de Gabriel e Michele, que interromperam o que faziam na cama por conta de sua chegada.
E lá estavam realmente os dois, despidos, trancados, abraçados, calados. Raul sentiu-se como traído, uma dor funda atravessou-lhe o peito, fê-lo sentir-se velho, inferior, asqueroso. Entrou no próprio quarto, pegou roupas e entrou no banho. Não pregou olhos naquele resto de madrugada, nem tampouco na parte da manhã. Pelas sete Gabriel foi pé ante pé para a cama, sem saber que que o outro, acordado, percebia a movimentação.
Tudo acontecera quase que acidentalmente. Após a praia, Michele tinha um encontro marcado, mas o rapaz ligara cancelando o compromisso. Resolvera-se então a ficar em casa. Gabriel ainda chamara-a para descer e tomar um chope na Praça Saens Peña, mas ela recusou-se. Então o jovem comprou duas garrafas de vinho, e os dois ficaram a beber. Começaram na sala, depois ela quis deitar-se, Gabriel então levou o vinho e os cálices pro quarto. A conversa seguiu, embriagaram-se, discorreram sobre vários assuntos, o sexo entrou em pauta, da teoria os dois se tocaram nas pontas dos dedos, um ímpeto os inflamou, beijaram-se, tocaram-se, despiram-se; Michele enroscou o amigo entre as pernas, um seio na boca do rapaz, que encontrou-se vivendo uma poesia erótica das mais belas e mais ardentes, em momentos longos e flamejantes, como quando a moça postou-se de bruços e abriu-se para ele como uma estrela-do-mar. E assim ficaram em perfeita consonância com a noite de lua cheia e convidativa para o amor.
No dia seguinte Raul nada comentou, tampouco os outros disseram palavra acerca do fato. Todos agiram como se nada houvesse ocorrido. Almoçaram juntos e agiram normalmente, e dias depois Michele abordou Gabriel na sala e disse que aquilo não fora um momento de fraqueza e em virtude do vinho, mas que vira-se acometida naquela noite de dois desejos: o de fazer amor e o de vingança contra o namorado que desmarcara o encontro por razões fúteis. Além disso avisou ao jovem a partir daquela noite não se iniciava um relacionamento e os dois não voltariam a se tocar com intenções que não fossem meramente fraternais. E foi dito e feito: a partir dali o namoro da mulher com o outro rapaz foi-se consolidando.
Tanto que os dois amigos acabaram por conhecer Adriano, que almoçava n'alguns finais de semana na casa dos amigos, mas lá nunca dormia por preferir a moça pernoitar no apartamento do namorado, na rua Santa Clara.
Michele percebia os ciúmes e a desolação de Raul, mas este jamais mudou seu modo de lidar com ela nem demonstrou nenhum sentimento ou conduta hostil quanto a Gabriel ou Adriano. Os três moradores do apartamento eram uma família.
4
Num dos almoços no apartamento dos amigos, quando Gabriel tocou, eufórico, na realização da Copa do Mundo no Brasil, Raul mostrou-se avesso ao fato de o País sediar o evento.
--Temos inúmeros problemas financeiros, sociais e não temos condições de gastar o que vamos gastar pra construir estádios. Faltam hospitais, creches..
--Isso vai incrementar o turismo, pode haver um bom retorno... -- replicava Adriano, filho de família socialmente privilegiada e já dono de bom patrimônio aos trinta e cinco anos.
Michele parecia concordar com o amigo, mas preferiu não deixar que a discussão se alongasse.
Veio a Copa e os quatro assistiram a todos os jogos juntos, e a torcida fervorosa foi de todos, que receberam no ânimo desportivo e na alma a ducha de água fria da derrota vergonhosa e inesquecível para a Alemanha.
Após a Copa do Mundo, o Brasil entrou em clima de eleições.
--Pra mim o segundo turno não é festa cívica. -- comentou Raul numa mesa de bar, entre Adriano e os outros amigos -- Não voto em Dilma nem Aécio. Repudio os dois.
Adriano era Aécio. Michele e Gabriel votavam em Dilma, mas ninguém quis prolongar a discussão por manter a serenidade e a cordialidade da conversa.
O ano de 2015 foi lotado de escândalos financeiros e casos de corrupção ligados ao governo e seu partido, em 2016 Dilma foi destituída e assumiu Temer, que fora vice da ex-presidente e, além de ter o nome envolvido em casos de depravação financeira, desmantelou todos os direitos dos trabalhadores. Um governo perverso e ultrarreacionário, igualmente cercado de casos de roubo de dinheiro público.
O dramático foi que toda essa crise financeira e o triunfo da direita (sem que isso queira dizer que o governo anterior fosse de esquerda) atingiram em cheio os três amigos. O banco resolveu investir na mecanização de alguns trabalhos que cabiam aos funcionários, e a agência em que aqueles trabalhavam foi fechada.
Raul se viu desempregado aos cinquenta e três anos. Emagreceu em demasia. Mal saía do quarto. Onde conseguiria outro emprego? E que direitos e garantias teria?
Tiveram de entregar o apartamento. Gabriel voltou a morar com os pais e a ter de submeter-se aos rigores impostos pela família protestante. Michele decidira também voltar a viver com os pais, mas Adriano pediu-lhe que vivesse com ele, com o que ela concordou de pronto.
Raul passou a morar numa quitinete cedida pelo pai, um português de oitenta anos, que tinha uma pequena mercearia e uma vila estreita de pequenos imóveis.
Não demorou a gastar o dinheiro da indenização trabalhista recebida: perdeu em alguns pequenos investimentos, o que não seria de surpreender num país em que poucos tinham emprego, e os que o tinham ganhavam, como ainda hoje, pouco demais.
Passou a fazer pequenos bicos de contabilidade, mas acabava quase sempre por ter no pai o provedor. Por fim decidiu-se a trabalhar com o genitor na casa comercial que este possuía.
Os contatos entre os três amigos passaram a dar-se pelas redes sociais, ficando a cada dia mais escassos.
Gabriel permanecia desempregado e obedecendo às normas da casa da família protestante, Michele também não se empregara, mas vivia feliz com o marido, que dava-lhe bom suporte financeiro; Raul, com o tempo, viu em si quase desparecer aquela coisa estranha e quase exacerbada que sentia pela mulher. Só ficou-lhe uma ponta quase imperceptível de mágoa por se ter sentido rejeitado por ela. Mas as lembranças do apartamento e do convívio com os outros dois não o abandonavam, porque a eles associara-se para fugir à solidão, que agora apossara-se dele novamente e todas as noites perfurava-lhe a alma sem complacência, fazendo o seu olhar a cada dia mais perdido e tristonho.
17.05.2020
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