Toda santa sexta-feira era aquele diabo! Euclides nunca vinha para casa. Vânia ficava esperando, o banho tomado e o corpo perfumado, um vestido curto de tecido leve e quase transparante, como se o marido fosse, surpreendentemente, chegar antes da madrugada, percorrer os olhos pelas suas coxas e pelo vestido a esvoaçar levemente com o vento, apalpar-lhe a cintura, os seios e as nádegas, sentir nas pontas dos dedos a textura do vestido, despi-la, possuí-la num ímpeto febril... Mas tudo isso eram devaneios! O danado sempre voltava na manhã de sábado ou então em profunda madrugada. E naquele dia não seria diferente: passaria a noite na esbórnia, chegaria bêbado, cheirando a cigarro e perfume barato, com todos os indícios de haver passado a noite com alguma vagabunda.
Vez por outra vinha com hematomas, sinal de haver-se metido em alguma briga, mas nunca dava satisfações ou se explicava. Mesmo que viesse com marcas de batom!
-- Sai pra lá! Vai dormir! Tava com mulher porra nenhuma! -- limitava-se Euclides a rugir quando ela notava alguma pista mais clara de o marido havê-la traído. Outras vezes ela reclamava quando o pegava sóbrio:
-- Você só quer saber de beber e chegar de madrugada. Esquece que tem mulher. Você acha que isso é casamento?
Ele se limitava a ficar murmurando entre os dentes alguma coisa que mal se entendia, mas nunca se dispunha a discutir a questão.
Era aquele sofrimento toda sexta-feira. Mas Vânia não sofria só nos finais de semanas: era praxe ele ficar pelos botequins quase diariamente, muito embora não madrugasse nos outros dias, chegando sempre entre dez e onze da noite.
Não faltava, ou pelo menos não faltava tanto com os deveres de marido. Buscava-a na cama, fazia amor, mas com um carinho e uma frequência menores do que ela desejava. Vânia não sabia se ele ainda a amava, nem mesmo se ela própria continuava a nutrir amor pelo marido. Mas sentia uma necessidade quase orgânica de ser acarinhada, de ter os dedos de alguém por entre os cabelos, de ter a boca demorada e intensamente beijada... como nas novelas que via... como nos romances de bolso que lia... como fora no seu tempo de menina, de recém-casada.
Estavam ambos casados já havia cinco anos, não tiveram nenhum filho por ser a mulher infértil, e às vezes esta presumia ter sido por isso sua a culpa do desgaste daquele casamento -- muito embora Euclides jamais houvesse reclamado do fato. Mas a questão é que Vânia tinha a sensação de haver-lhe feito um homem a sentir-se incompleto, frustrado, que a punisse com a ausência e a desatenção o fato de não ser pai.
Era difícil o Euclides: quase não falava, quase não sorria. Era pedreiro e vivia aporrinhado e resmungando sobre os ossos do seu ofício. Vivia cansado ou então enfiado nas suas bebedeiras.
- Merda de vida...! - costumava queixar-se com sua voz quase gutural - Muito trabalho e o dinheiro pouco. Só trabalho e aborrecimento... Isso lá é vida!?
Aos sábados e domingos aquela sensação de solidão seguia a apertar o peito de Vânia: ele acordava tarde e pouco falava, ora comido pela ressaca, ora enclausurado em seus pensamentos e seu mau-humor, os olhos voltados para a televisão. Diabos! Três anos de namoro e cinco de casamento, e Vânia pouco conhecia o seu homem.
A casa era triste e silenciosa, monótona, tediosa, e só ganhou alguma vida quando Eusébio, o irmão mais velho de Euclides, chegou de Aracaju e instalou-se num quarto-com-banheiro que Euclides construíra no fundo do quintal para abrigar o outro.
Eusébio era falante embora parecesse tristonho. Às vezes mergulhava em profundo silêncio, mas não era como o irmão. Era mais comedido; não se encharcava de bebida, era sociável. Euclides recebeu-o com enorme alegria, entregou-lhe o quartinho que lhe levantara com grande satisfação.
-- Vê só, mano: com o tempo você aumenta esse teu quartinho, pega um pedaço maior do terreno e me paga aos pouquinhos: o importante é nós ajudar um ao outro.
Depois da chegada de Eusébio, Euclides tornou-se mais caseiro, raramente madrugando às sextas, chegando quase sempre cedo nos outros dias, e Vânia percebia que isso se dava porque o irmão estimulara-o a ficar em casa a trocar ideias, e também pelo motivo de, como era bastante notório, o marido temer ser traído pela esposa com o cunhado.
Logo Eusébio empregou-se, numa obra cujo encarregado Euclides apresentou-o. O irmão desempenhava suas tarefas com habilidade, também era um pedreiro de grande competência.
Alguns dias Eusébio chegava do trabalho, banhava-se e comia da comida que Vânia preparava, ficava a conversar longamente com o casal, a tocar em vários assuntos, a rememorar os tempos da infância de extrema pobreza vivida em Nossa Senhora do Socorro, e a ida da família para Aracaju. Recordavam os pais já falecidos e comentavam da impossibilidade de permanecer na terra natal por conta da inexistência de perspectiva de condicões razoáveis de subsistência, da posterior necessidade de deixar a própria Aracaju por razões semelhantes, e Eusébio tinha também uma dor atravessada no peito:
-- Não sei por que a Cássia me deixou. -- lamentava-se -- Eu não fiz nada de mal com ela. Uma ingrata! Tu não sabe, mano, como eu gostava daquela mulher.
Cássia era a mulher com quem vivera durante dez anos, que nos últimos tempos de vida conjugal não lhe dera mais importância, não lhe fizera mais elogios nem agrados, pouco aceitou-o no leito e tinha-o na conta de quase um traste, além de, num fatídico dia, olhá-lo com um olhar de profundo desprezo e dizer-lhe:
-- Não quero mais viver com tu. Eu não gosto mais de você. Vou viver minha vida longe de você.
O homem lamuriava-se quando trazia à tona aquelas lembranças, e Vânia sentia que identificava-se de certo modo com ele, pois era uma mulher com o mesmo sentimento de abandono que acometia o cunhado. Estava casada, vivendo com o marido, deitando com o marido, mas era uma mulher abandonada como qualquer outra sem homem.
Quando encontrava-se sozinho com a cunhada, Eusébio nunca entrava na casa desta, por respeito ao irmão e para não causar impressão ruim a qualquer vizinho que casualmente por ali passasse e o visse entrar, e também porque sabia que Eusébio não gostaria. Mas ficava sentado a uma cadeira, no quintal, e naqueles momentos sentia-se mais à vontade para falar com maior detalhamento sobre a saudade do norte e principalmentte da tristeza de ter perdido Cássia.
Já se haviam passado dois anos e ele não a esquecia. Tinha a autoestima ferida, um sentimento de extrema solidão, a sensação de uma coisa que doía fundo dentro do peito.
A partir de um certo tempo, Vânia também encorajou-se a relatar tudo aquilo que corroía-lhe a alma e a fazia infeliz, a queixar-se do marido, que tornara-a uma mulher ávida de afeto e frustrada, triste e solitária. À medida em que os dois sentiam-se mais à vontade para trocar confidências, Euclides tornava-se mais frequente na esbórnia das sextas e nas pequenas bebedeiras dos outros dias, agora já sem dar muita atenção ao irmão, voltando pouco a pouco a ser o mesmo caladão de antes.
Se, quando o irmão era recém-chegado, o marido de Vânia, enciumado e temeroso, procurava-a na cama com mais frequência, agora voltava a ser o mesmo de antes, voltado para as suas bebedeiras, seus maus-humores e seus pensamentos. Enquanto mulher e cunhado conversavam quase todas as noites, ela à porta da sala, ele sentado na cadeira do quintal. Até que um belo dia Eusébio entrou.
Vânia colocara um daqueles vestidos leves e curtos com que sempre esperava o marido, e o cunhado começara a pensar que ela o fazia para ele. Eusébio. Contivera o desejo mais que pudera, mas o problema era que aquele equívoco devolvia-lhe tudo aquilo que a ex-mulher lhe roubara: a autoestima, o desejo de viver, a sensação de ser um homem à altura da palavra.
Durante a conversa, parou de repente e tomou um pulso de Vânia. A expressão da mulher era de estupefação, mas ela não relutou, não o repeliu, apenas ficou a encará-lo, os olhos arregalados, incapaz de dizer palavra . Eusébio foi conduzindo-a para dentro de casa, ela deixou-se levar como um autômato, e os dois se amaram com a entrega e a volúpia dos amantes dos mais picantes romances de amor.
Os dois se deram como que loucamante enamorados, e trocaram tantas carícias e tantas juras de amor, que mais pareciam dois adolescentes embevecidos no primeiro ato sexual de suas vidas. E desfrutaram plenamente cada momento, cada gemido, cada suspiro, cada palavra quente, naquela noite de delírios, em que ambos sentiram-se apaixonados e correspondidos, felizes como se fosse impossível existir na face do planeta qualquer sentimento ou coisa diversa da luxúria, da paixão e da felicidade.
Tão logo deixaram o quarto e vinham saindo, ainda ajeitando as roupas e sentindo-se leves como flutuassem, Euclides surgiu na sala, bem diante dos dois.
Ficou longos momentos sem palavra, os olhos febris de ódio, a voz entalada na garganta, a boca aberta numa estupefação inefável, porque, apesar das suspeitas de que aquilo já estivesse acontecendo antes, tivera durante o período de desconfiança a esperança de estar equivocado.
-- Desgraçados! Filhos da puta! Vagabunda! Puta suja! Maldito asqueroso! - gritou e rugiu ao mesmo tempo, e sentia um furor demoníaco.
Teve um ímpeto de pegar o facão na cozinha e acabar com os dois, que permaneciam imóveis e sem ação. Mas conteve-se, ofegante:
-- Some os dois daqui... Pega tudo o que é de vocês e some da minha frente agora.
Eusébio quis dizer alguma coisa...
-- Cala, desgraçado! -- berrou novamente Euclides -- Senão eu te mato! -- Foi saindo, ofegante: - Some os dois daqui agora. Vou até o botequim. Se eu encontrar um de vocês aqui quando eu voltar, eu mato.
A rua encheu-se de gente. Euclides passou carrancudo pelo meio das pessoas, enquanto os amantes estavam quedados e pálidos de vergonha diante dos vizinhos.
Arrumaram as roupas, fretaram uma kombi e saíram do bairro. Dentro do veículo Eusébio ainda murmurou para ela:
-- Não sei dizer o que tô sentindo.
Vânia comentou com um ar de desânimo o olhar distante:
-- Eu vou sumir. Vou pra casa da minha mãe, que é bem longe. Quero esquecer o dia de hoje. Tô me sentindo uma piranha! Uma vagabunda!
-- Meu Deus! -- Eusébio levou as mãos à cabeça, não sabia o que mais dizer.
Passado pouco mais de um ano, ele, Eusébio, numa tarde de domingo, procurou o irmão. Euclides, que a princípio relutou em dirigir-lhe a palavra, por fim acabou por fazê-lo.
-- Só não entra, seu traidor. Eu falo contigo aqui do portão mesmo.
-- Meu irmão, eu não queria te fazer de besta...
-- Não me chama de irmão, seu maldito...!
-- Desculpa, Euclides, mas não foi por maldade...
-- Você veio me esculachar, filho da puta!? - rugiu com o olhar fuzilante.
-- Não, por favor, não é isso. Eu só queria te dizer que foi uma doideira... Mas é que eu tava morrendo de tristeza, tinha uma dor que me maltratava...
-- Desgraçado! Você me traiu com aquela... -- longa pausa -- Ela era a coisa que eu mais amei nessa vida...
-- Perdoa, Eucli...
-- Nunca!
Eusébio botou a mão no peito:
-- É que eu sentia uma tristeza tão grande, uma coisa que me matava aos poucos, que me doía fundo aqui dentro...
Euclides bateu o portão, deu as costas ao irmão, percorreu o quintal, entrou na casa batendo também a porta da sala. Eusébio murmurou para si mesmo:
-- Uma coisa que mata aos poucos... que dói fundo aqui no peito...
2008
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