sábado, 30 de dezembro de 2023

ONDA

 Que coisa é essa que vibra no meu peito?

Seria um grito, música, agonia;

Seria arroubo, afã, fogo de vida?

O que brinca assim na minha alma

Tão baça, pálida, obscura?

Seria uma cantiga que vencesse o tempo,

O siso, os desencantos e a fadiga,

As agruras, os percalços e as vivências,

E se instalasse em mim qual flor no árido?

O que será que dói, que canta ou que extasia,

Ou que tortura ou desvanece e não decifro?

Mas que onda é essa que vem, rebenta assim de súbito

Na calmaria  quase que imóvel deste meu mar

Assim tão quedo, na linha do equador?

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

HOMEM DE FERRO E CIMENTO

 Quem não se encanta com sons de uma canção

Nem se rende a um olhar angelical de um animal...

Quem não se enleva em contemplar as verdes matas

Ou ver o mar a tocar o céu bem no horizonte...

Quem não delira nas paixões mais extremosas

Nem ama ser algum neste planeta...

Quem não se deixa bulir por arte alguma 

Anda e vegeta, sem viver jamais.

Não mais do que um robô de carne e osso,

Não tem alma nem carrega sentimentos,

É rude e insípido qual pó de asfalto

A voar pelas pistas sem poema e sem canção.



O ABANDONO À ESPERANÇA

 Deixemos de lado toda esperança:

Ainda pensamos como há cem anos,

Ainda amamos os generais e caudilhos

E os influentes senhores feudais.


Esqueçamos os sonhos de dias sublimes

Pejados de paz, felicidade e alegria

E ergamos nossas taças, brindemos

Ao nada, ao nada, não mais do que ao nada!

sábado, 2 de dezembro de 2023

NAS ANDANÇAS DO PODER - QUINTA PARTE: "O LATIFUNDIÁRIO"

O agricultor Isaías José Simão de Andrade refestelou-se na poltrona, colocou os pés sobre a mesa de centro da enorme sala da casa grande da fazenda e, enquanto assistia ao julgamento de um dos implicados nos atos golpistas do 8 de janeiro de 2023, resmungava para seu advogado:

--Olha só, Azevedo!  Punir um trabalhador com 17 anos de cadeia... Que desgraçados!

--Tudo por causa de um comunista safado... -- acrescentava o causídico.

Isaías, mais conhecido como Zeca Simão, chefe político de uma cidade goiana de 200.000 habitantes chamada Nova Colômbia, participou com vultosas quantias do financiamento daquele movimento de terroristas e vândalos que acamparam em frente ao QG do Exército (com a a anuência e a simpatia dos militares) no Distrito Federal e depredaram depois as sedes dos Três Poderes.  Investira pesado nos atos golpistas e vibrara quando os depredadores romperam as frágeis e complacentes barreiras e adentraram as edificações públicas.  Alegrara-se com a resistência de membros do Exército a deixar que a polícia efetuasse prisões no acampamento.  Frustrara-se profundamente, todavia, quando Lula deixou de recorrer à G.L.O.(Garantia da Lei e da Ordem) para reunir-se com os governadores e evitar que os estados aderissem ao movimento.  Esmurrara a mesa a que se sentava e levara uma das mãos à cabeça com extrema desolação:

--Puta que pariu! Sem G.L.O. esse desgraçado vai governar!

O plano era a adesão dos extremistas de direita nos 27 estados da Federação  e a  convocação das forças armadas para controlar a situação e demorar-se indefinidamente na gestão da ordem, até que fosse impossível Lula permanecer no governo.

Agora ele rosna para o advogado, um brilho odiento nos olhos:

--Olha, Azevedo, eu gastei uma fortuna pra esse filho do demônio não assumir, e agora tô vendo os patriotas sendo presos, além de ficar na espera que algum oficial de Justiça venha aqui me citar pra prestar depoimento, mas vou te dizer uma coisa -- e levantou-se, agora exaltado -- :  eu juro pela memória do meu pai, do meu avô e do meu bisavô que tá pra nascer o macho que vai me botar atrás das grades!  E o oficial de Justiça que aparecer aqui por minhas terras vai ser tratado com chumbo, com muito chumbo!

E não eram vazias as suas ameaças.  Se antes Zeca Simão era uma espécie de deus de Nova Colômbia, respeitado e temido até por traficantes e milicianos, depois de Bolsonaro baixar a portaria que facilitou o acesso às armas, o fazendeiro passou a ter a sua própria milícia armada, e distribuía ordens e diretrizes pelos quatro cantos da cidade com uma desenvoltura de general ou rei absolutista.  Tornou-se uma espécie de deus.

Tinha métodos violentos: fazia ameaças, designava capangas para aplicar surras e cometer assassinatos.  Vez por outro fazia ele próprio o chamado trabalho sujo, da mesma  forma como seu pai, avô e bisavô faziam para merecer sua tão grande veneração.  O bisavô, a pouco mais de um decênio para findar o século XIX, contratara e liderara um grupo de marginais e aventureiros,  e pusera-se a grilar terras públicas e a usurpar propriedades de outros fazendeiros, em batalhas sangrentas e assassinatos absolutamente covardes, tornando posteriormente tais homens brutais seus capangas e seguranças.  O avô, que dividira a herança do genitor com dois irmãos, valera-se dos mesmíssimos expedientes para ampliar os latifúndios herdados, com a diferença de que já encontrava-se estabelecido naquelas  propriedades.  O pai, por sua vez, limitara-se à grilagem, mas ensinara-lhe e incutira-lhe a "arte" da usurpação e da violência; mas Simão não precisara de mais do que algumas ameaças para estender seu império agrícola, comprando a preços bastante abaixo do mercado  duas fazendas que anexou ao seu imenso feudo.

Após o agricultor baixar o tom e sentar-se e refestelar-se novamente na poltrona, um tanto quanto exaurido, o advogado procurou tranquilizá-lo:

--Simão, você nem precisa de uso de força pra não te acontecer nada. Vocês, agricultores , têm alguma coisa em torno de quatrocentos parlamentares defendendo seus interesses.  Ninguém é maluco de querer prender um homem como você... a não ser que... -- e soltou uma gargalhada -- a não ser que queira que mudemos a Constituição e coloquemos quem quiser te prender na cadeia.  Além disso, nós perdemos uma batalha, mas jamais a guerra.  Lembre-se sempre disso.  Veja: o general Júlio César Arruda acabou demitido pelo Lula por rebelar-se contra ele, o que mostra que o comunista não leva uma vida confortável ante os militares.  O comando do Exército ficou então com o general Tomás Paiva, que pregou o respeito à democracia, à alternância do poder e ao resultado das urnas, mas não é o único líder das forças armadas.

--Isso é verdade.  -- concordou o outro.

--Pois é... Sendo assim, menor mijada fora do penico e esse comunista de uma figa  tá deposto, preso, exilado, e a gente dele vai toda junto.  Essa "esquerdalha", como dizia o nosso Bolsonaro, vai toda se foder também.  

--Que Deus te ouça!

--Mas vai ouvir, não tenha dúvida! E tem mais:  nossos amigos bolsonaristas tão dando um trabalho do cacete pra essa escória esquerdista.  Os comunistas não têm paz, nossa gente sabe perturbar e tirar o sossego como ninguém.  Vê como aporrinham o Flávio Dino?

--E é pra aporrinhar mesmo...

--E agora temos do nosso lado o Rodrigo Pacheco, que bancou o democrata, arrotou estado democrático de direito pra lá e pra cá, e agora  faz acenos ao eleitorado bolsonarista de Minas, com a PEC que limita as decisões monocráticas do Supremo e quer dar ao Congresso poderes pra rever e modificar decisões do STF.

--Não confio no Pacheco.. Atrapalhou muito nosso projeto de tomada do poder com esses discursos aí que você falou. O que ele quer é ser prefeito ou governador de Minas e daí pular até pra Presidência da República

--Mas agora é pra confiar, Simão!  Ele agora é gente nossa!  

Azevedo fez uma ligeira pausa, continuou:

--É preciso que atentemos também pra importância do atual cenário.  A má-vontade de inúmeras alas militares com o Lula fez que o Brasil voltasse àquela liberdade vigiada do início da chamada redemocratização, o que torna a situação dos chamados democratas muito frágil.  E, se você analisar bem, a possibilidade de o Trump ganhar nos Estados Unidos, ganhar do Biden, que foi um grande empecilho aos nossos planos de poder, acende uma esperança muito grande, porque a verdade é que Trump logo vai estar eleito e não vai se opor jamais a que tomemos o poder da mão dessa gente.

--Uma questão de tempo.  -- concordou o fazendeiro enquanto olhava pro longe.

--Sim, uma questão de tempo.  E existe um fato concreto que você nunca pode esquecer:  o Brasil é do agro, meu amigo. Você conhece poder maior?