segunda-feira, 7 de setembro de 2020

NAS ANDANÇAS DO PODER -- PRIMEIRA PARTE: "O DEPUTADO"

 O DEPUTADO

cap 1

(O BÊBADO)

Desceu do táxi às oito da manhã. Vinha bêbado da noitada, a gravata e o paletó dependurado num dos braços. Entrou no prédio com os passos trôpegos, pegou o elevador e chegou ao apartamento. Dentro da sala, jogou-se ao sofá, e o revólver que portava caiu da cintura. Tirou-o do sofá e colocou-o sobre a mesa de canto.

A cabeça rodava, os pensamentos mais velozmente ainda.

Lá fora crianças brincavam. Era uma manhã serena e morna de primavera. Babás e mães empurravam seus carrinhos com bebês, colhendo para eles o sol da manhã dourada. Os carros passavam sem estardalhaços pela rua de pouco movimento e pouca atratividade pelos seus quebra-molas. Algumas raras buzinas se ouviam, o trânsito na rua transversal era intenso.

Ficou a matutar sobre a vida e o porre que tomara. De que valia a esbórnia e um porre? Besteira! De que valia a vida? De que valia tudo?

Mulheres decotadas passavam pela rua, os olhos ávidos do porteiro do prédio as acompanhavam. Moças de saia curta cutucavam-lhe os desejos.

O bêbado tentou levantar-se em vão, caiu sentado no sofá. Já nem se lembrava do momento em que pagara o táxi. Mas quase com certeza o pagara, pois do contrário teria havido uma confusão dos diabos na entrada do prédio. Levou uma das mãos ao rosto e teve vontade de chorar: uma lágrima desceu-lhe do rosto suado.

Um carro deslizou suavemente pela rua de pouco movimento. Uma babá tirou a criança do carrinho e a pôs no colo. Um menino andava vagarosamente em sua bicicleta, sobre a calçada de colorido piso. Um passarinho pousou num ninho defronte a uma janela, sobre o galho de uma árvore frondosa. Um casal de idosos passeava de mãos dadas, uma mulher bonita e de vestido com transparências arrastava atrás de si os olhos do porteiro. Outro menino passou calmamente em sua bicicleta. Um outro passarinho procurou o ninho. O estampido do tiro mortal encheu a manhã serena, subitamente convertida em manhã de pânico e estupefação.


2008

cap. 2

O deputado Adriano Ferraz teve uma ascensão política rápida, fácil, que poder-se-ia classificar, tal qual dizem as pessoas, como meteórica.  Filho de político reacionário que chegara a Brasília de modo mais demorado e fora galgando os cargos numa gradação corriqueira aos da classe, começando como vereador, depois chegando à Assembleia Legislativa para depois fincar pé em Brasília como deputado federal, abrindo anos depois   espaço para o filho ocupar uma cadeira na Câmara, a seu lado, ao final dos anos 1990,  rezando pela mesmíssima cartilha, entretanto de modo muito mais feroz.

Ferrazinho era arrogante, antipático, cara de quem sente nojo o tempo inteiro, não sei se por sentir o cheiro do próprio mau-caráter e imoralidade.  Mas firmou-se como deputado, exercia influência sobre alguns colegas, era respeitado, reverenciado e jamais abandonou os amigos dos tempos em que ainda vivia da mesada do papai "coruja".   Eram todos de classes abastadas, excelentes companheiros nas "baladas" das ruas da Zona Sul do Rio.  Nada como viver uma vida de facilidades e futilidades, mas isso para Adriano tinha seus momentos tediosos, que precisavam ser preenchidos com algo mais emocionante e apimentado, como vez por outra uma  briga de rua ou de bar.  Levando desse modo a vida, o "garoto do papai" formou-se em direito e a partir da formatura nada fez além de transar, beber, arranjar uma ou outra encrenca, aspirar pó branco e viver assiduamente as noitadas cariocas.

Um dia o pai o chamou para uma conversa, foi objetivo, minucioso e fê-lo ver que era preciso parar de levar aquela vida irresponsável e inconsequente, para não ficar conhecido como um jovem  vagabundo e mimado, pois pensava em lançá-lo na carreira política.   Reticente por alguns dias, resolveu Adriano abraçar a ideia com zelo e carinho quando consultou a namorada, que dissera que orgulhar-se-ia muito em vê-lo como uma celebridade da política. 

Há de reiterar-se que os amigos jamais foram esquecidos;  não somente os amigos ricos, mas também alguns poucos de origem pobre que fizera em suas idas a algumas favelas, onde vez por outra participava de bailes "funk" e aproveitava para visitar alguma boca-de-fumo e consumir uma ou outra coisinha ou conversar com os conhecidos bons de armas que faziam-lhe segurança quando ele e sua turma se metiam em alguma confusão que pudesse acarretar-lhes o menor risco quanto à integridade física.  Não vai daqui nenhuma condenação moral a usuários de drogas, mas há de se mencionar que a estrutura criminosa existente por trás dos narcóticos é motivo suficiente pra ficarmos bem longe deles.

Dentre esses amigos bons de armas teve  especial deferência com Rogério, importante gerente do tráfico, colecionador de óbitos,  a quem Adriano, logo que eleito, deu ternos e um banho de loja, além de nomeá-lo funcionário público, na função de motorista acumulada com a de segurança particular. Assim passou Rogério Ananias à condição de "homem de bem",  funcionário público respeitado e de grande prestígio entre lobistas e jornalistas que quisessem uma facilidade maior de acesso ao ilustre Adriano Ferraz.  Nem precisou concurso público, que seria o correto, mas o poder cria leis e meios de tornar as coisas fáceis pra si e pra  quem dele consegue se aproximar.  Tampouco foi necessário tentar dar um "jeito" nos relatórios de antecedentes do motorista, porque este, apesar de matador com  uma legião de defuntos no currículo,  não possuía ficha criminal: nunca fora acusado e tinha a ficha limpa e impoluta como a honra de um anjo.



CAP. 3


Assim que Adriano tomou posse, tratou logo de lotar o gabinete de funcionários.  Foi um trem da alegria como tantos extremamente comuns no âmbito da política, em que coloca-se pra dentro do serviço público uma enfiada de assessores inúteis  e sem concurso,  remunerados com salários nababescos,  e um dos meios de fazer que sobre verba pra outros trens da alegria é colocar a culpa nos ombros dos servidores concursados e estuprar-lhes os direitos e os ganhos.  A população adora linchamentos, e os políticos dão a ela o sangue que tanto a compraz.

Logo que Rogério foi nomeado, Adriano  impôs que este morasse fora da favela.  É favela mesmo: não é comunidade coisa nenhuma! O cunho comunidade foi um meio que se arranjou de fazer o problema das favelas ser entendido como resolvido e levar as pessoas a imaginar serem as favelas coisa do passado e hoje só haver comunidades.   A classe política, quando não quer dar solução a um problema, adota um caminho fácil: muda o nome da mazela e tudo parece resolvido e superado. 

Voltemos porém ao motorista: este foi morar num apartamento do Catete.  Rogério gostou do apartamento e da rua, e  vinha sempre de Brasília com Adriano quando o deputado resolvia passar o fim de semana no Rio.  Aliás, esses finais de semana eram todos e tinham início na quarta ou quinta pela manhã, prolongando-se às vezes até à segunda-feira.  Nada como ser político ou protegido de um deles: é de muito longe bem melhor do que trabalhar -- mas há políticos sérios e bons, apesar disto estar bem distante de corresponder à maioria.

O ex-traficante, nas ocasiões em que descia pro Rio, visitava a mãe no morro, conversava alguns momentos e com os antigos companheiros, e depois partia pras termas de Copacabana.   Não que no morro em algum momento houvesse-lhe faltado uma moça bonita com quem deitar-se para regalar-se dos seios túmidos, coxas roliças, nádegas protuberantes, mas é que achava os "inferninhos" lugares especiais.  Aquele cheiro de perfume das mulheres misturado ao de cigarro e carpete sem ventilação adentrava-lhe as narinas  atiçando-lhe de certo modo  os instintos, pois sempre vinha acompanhado da figura das moças seminuas ou totalmente desnudas, rebolando no palco de modo sensual e provocante.  Algumas olhavam-no e tratavam-no com extraordinário apreço.  Não seria pra menos: afinal era um traficante de prestígio e, embora agora afastado da boca-de-fumo, nunca deixara de passar sorrateiramente alguma droga pr'aquelas que eram usuárias.  Isso lhe valia sempre um ganho extra, ainda que o ganho fosse o corpo de uma daquelas moças bonitas e viçosas.

Adriano aliás compartilhava dos mesmos gostos do motorista e amigo, havendo-se conhecido os dois numa daquelas boates.   Nunca tivera também o político dificuldades para ter mulheres,  mas era atraído para aqueles ambientes pelos mesmos aromas e imagens de pecado que enlevavam Rogério.   E o pecado é simplesmente sublime, só os hipócritas e os falsos moralistas não têm a honestidade de admiti-lo.  

Rogério percorria o corpo das mulheres com seus olhos de luxúria: bundas magnificamente belas, despidas ou vestidas apenas de tiras fluorescentes para sobressaírem no ambiente escuro. Ficava a admirar e a analisar uma a uma das belas, todos os atributos físicos, o jeito de falar e dançar,  a sensualidade que destilava cada profissional do sexo daquelas.  E as profissionais do sexo são respeitáveis como quaisquer outras trabalhadoras, porque abraçam uma profissão que sequer lhes dá dá o direito à repulsa, obrigando-as a deitarem-se com aqueles que  se disponham a pagar pelo amor, sem que haja dissimulações de sentimentos ou juras vãs e ignóbeis.  Prostitutas nada respeitáveis são aquelas pessoas que vendem sua opinião,  sua postura  e suas atitudes, que mentem e sofismam em troca de benefícios financeiros ou de quaisquer outras naturezas; os que prostituem sua amizade por verem em alguém uma possibilidade de obter alguma vantagem pessoal, os que declaram uma falsa lealdade e outras hipocrisias semelhantes.    Há muitos políticos, formadores de opinião, gente da imprensa, negociantes, empresários, etc, que podemos chamar de prostitutas da pior espécie.

Uma vez Rogério, antes de Adriano tornar-se deputado, viu este ser empurrado por um outro sujeito e cair sentado sobre uma poltrona.  De pronto partiu na direção do agressor e apontou-lhe a arma bem nas fuças:

--O que é que tá havendo!!?

--Baixa essa porra, que eu sou policial! -- ordenou o outro.

--Foda-se! --retrucou Rogério -- Mas quem tá com a arma nos teus cornos sou eu!

O policial explicou agora num tom brando:

--Mas ele passou a mão na minha mulher.

--Tua mulher?? -- o traficante olhou firme pro policial -- Tua mulher tá aqui? Tua mulher é puta?

Um conhecido de Rogério imiscuiu-se:

--Tua mulher é puta, tá aqui trabalhando, é?  A minha, não. A minha tá lá em casa...

Um garçom e o segurança da casa intervieram, conciliadores:

--Vamos esfriar os ânimos, gente...

--Vamos parar: isso não leva a nada: todo mundo só quer se divertir.

O policial foi pra bem distante dos outros, Adriano ficou olhando pra Rogério, entre desconcertado e agradecido. 

--Vamos tomar mais uma! -- propôs o traficante, quebrando aquele clima desconfortável.

E os dois ficaram ali até terminarem as atividades da casa, indo-se após a partida do agressor, que foi embora com o rabo entre as pernas e quieto como uma criança bem comportada.


 

cap. 4


Adriano, em sua carreira política, soube de  muito esquema de corrupção ao seu redor.  Foi vendo, foi vendo e, como não viu  ninguém ser preso ou pelo menos permanecer na cadeia, resolveu participar de alguns.  Os gastos já iam lá pela estratosfera: afinal mulheres, bebidas, bacanais, drogas, festas, tudo isso e mais deveria ser financiado por rendas extraordinárias, não pelo seus ganhos elevadíssimos  e mordomias suadas de deputado.  

Rogério era seu homem de confiança, encarregado de receber as propinas e subornos.

--Meu motorista vai aí apresentar a documentação ao senhor. --dizia sempre do celular quando queria informar que o homem de confiança iria pegar o dinheiro com quem o subornava.

Todavia numa daquelas vezes um empresário que subornara-o para apresentar e defender projeto de lei de interesse dele, empresário, avisou-o depois de que o contador da empresa, que tomara ciência da destinação da verba, insatisfeito com as condições salariais, ameaçara pedir demissão e botar a boca no mundo. Adriano então convocou  o capanga, e Rogério veio ao Rio num domingo, obteve dos amigos do tráfico um carro de placa "fria", passou uma tarde inteirinha aguardando o contador sair do bar,  e ao vê-lo se levantar e partir para casa, esperou uns  minutos e depois ligou e emparelhou o automóvel  com o homem, que seguia a pé, e disparou nele seis tiros certeiros e mortais.  Logo depois acelerou, atravessou o túnel e do outro lado subiu a favela numa moto que o já esperava no local em que saltou.  Aquilo rendeu ao assassino um bom dinheiro, que recebeu do dono da empresa, pois seu chefe mandou avisar pessoalmente a  a este do "trabalho" que mandara fazer e seria, segundo o deputado,  de competência do outro, que pagou sem nenhuma objeção.

Rogério  era braço-direito de  Adriano.  De absoluta confiança, leal, dedicado e devotado ao chefe.  Noutra vez  um eleitor viu o parlamentar chegar defronte à residência oficial, em carro também oficial, dirigido pelo subordinado, e gritou-lhe umas verdades:

--Seu desgraçado! Você é o carrasco das classes trabalhadores! Baba-saco de rico! Demônio!

Rogério abriu rapidamente  a porta do carro, saltou enquanto avisava:

--Vou dar umas porradas nesse cara!

--Fica aí! -- Adriano precisou gritar. 

Rogério parou, ficou a fitá-lo com as mãos cerradas e os músculos retesados.

--Fica aí! -- repetiu Adriano. Depois explicou a um Rogério confuso: -- Se ele leva um tapa, eu fico "queimado". Imagina a imprensa sabendo disso. Imagina que prato pras esquerdas! Entra e senta de volta. -- apontando para o banco do volante. 

O motorista sentou-se , calado, Adriano suspirou, o manifestante ficou quedado e lívido.  Segundos depois foi embora.

O deputado, após ver o subalterno mais sereno, autorizou-o a sair do carro e perguntou:

--Tá mais calmo agora?

--Não tava nervoso, só ia fazer o que...

--Não faz nada nunca sem eu mandar.  -- instruiu Adriano num tom macio --  Você acha que eu vou ficar dando mole, agora, no terceiro mandado e sem passar por nenhum percalço?  Vou virar notícia por um merdinha que resolve me ofender?

Quando os dois já iam andando lado a lado, avisou:

--A gente vai pro Rio amanhã.   Vou dar uma "perna-de-três" na Sabrina e você vai pegar umas cinco meninas no puteiro pra gente fazer uma brincandeira lá em casa.

--Opa! Valeu! -- brandiu o braço o outro, numa euforia.

--Sabrina que me perdoe, -- comentou o chefe -- mas amanhã eu quero é muita putaria. Não vou ver ela, não.

--Mas ela vai acabar sabendo que tu vai estar no Rio.

--Pensando bem, não vou fazer lá em casa.  Nós vamos lá pra minha casa, no sítio.  Seu eu ficar no Rio, ela é capaz de aparecer por lá.

Rogério observava que a cada dia Adriano mais caía na orgia e mais se afastava de Sabrina.

--Ela vai "rodar".  Eu vou lá ficar preso a ela, com tanta mulher pelo mundo?

Rogério sorriu, os dois seguiram andando.



CAP. 5


Acontece que Sabrina estava grávida.   Um descuido de ambos, uma "tabela" mal feita, um acidente, sabe-se lá, mas o fato é que estava grávida.  Faltou -lhe a menstruação, a moça fez os exames, apareceu a verdade! Positivo pra gravidez!

Esperara Adriano no fim de semana em que ele resolveu ir ao sítio.  Como não viu seus telefonemas atendidos, na segunda-feira, após muita insistência, conseguiu avisar aos prantos:

--Tô  grávida! Grávida, ouviu? E você, fugindo de mim. -- e bateu a seguir o telefone.  

Naquela semana Adriano não conseguiu trabalhar em paz, quarta de manhã pegou o voo para o Rio.  

O pai de Sabrina era um delegado de polícia de cinquenta e oito anos, divorciado e que morava sozinho num apartamento do Grajaú.  Tinha-a  e a mais duas filhas, três lindezas de qualquer cristão se encantar.  Todas moravam com a mãe, enquanto Nélson, o pai da moça, também afeito à noite e ao pecado, vivia pelas músicas ao vivo dos bares, clubes, uisquerias, sempre envolvido com uma ou outra mulher.  Não frequentava os prostíbulos, achava de mau-gosto e preferia uma bela conquista a um programa sem nada de emocional.  Era um homem de jeito sereno, palavras e gestos comedidos.  Apesar dos três anos de separação, ainda doía de certo modo não viver com a ex-mulher e principalmente as filhas.  Apegara-se muito à família, mas a vida de policial trazia-lhe muitas tentações, e a infidelidade fizera-o perder o casamento.  

Sabrina era a filha do meio, com vinte e sete anos, e foi até à casa do pai para contar a novidade.

--E você vai ter essa criança? -- ele quis saber.

--Vou, sim, pai.  Não vou abortar.

Nélson levantou -se do sofá, olhou firme e calmamente para a filha:

--Apoio você na decisão que tomar.

A filha balançou a cabeça e baixou os olhos...

--E o Adriano? O que ele acha? -- perguntou o pai.

--Ele ainda não sabe.  -- mentiu Sabrina.

--Então diga a ele o mais cedo que você puder.  A mim não importa se ele vai ou não ficar com você.  Só acho que você deve exigir que ele assuma a criança.

--Eu sei, pai. -- ela balançou  a cabeça.

Naquele fim de semana esteve com Adriano.

--Aborta! -- o namorado disse com certa aspereza.

--Não vou abortar! -- Sabrina exaltou-se, um fio de lágrima descendo por um dos olhos com as pálpebras avermelhadas de pranto.

--O que você quer que eu faça, então!? -- o deputado elevou a voz.

--Não sei o que você vai fazer!  Vou ter essa criança e ponto final!

--Então vai pro inferno! -- ele brandiu um dos braços.

Ela parou diante dele, segurando-lhe os braços:

--Adriano(!), eu pensei que você me amasse!  E não tive a intenção de provocar essa gravidez!

--Então vai lá e aborta!

--Não vou, Adriano! Não tenho nada contra o aborto, mas eu quero ter esse filho!

--Pra quê!?  Pra levar minha pensão!?  Partilhar meus bens!?

Sabrina se encheu de um sentimento que misturava ódio, indignação, dor de amor incorrespondido, gritou com a voz embargada pelo choro convulso:

-- Você é um desgraçado!  Um desgraçado! Você é a criatura mais infame que eu já conheci!

Ele a segurou pelos braços, sacudiu-a: 

--Não quero filho nenhum!!! Você não vai ter essa criança!!!

Sabrina desvencilhou-se, saiu pelo apartamento do namorado afora  e correu para o carro.  Ligou a chave e saiu dirigindo, enquanto Adriano atirava-se a uma poltrona, transtornado e enraivecido.

O político pegou do celular, ligou para Rogério Ananias:

--Preciso que você venha aqui agora. Temos que conversar pessoalmente.

--Mas o que tá acontecendo...?

--Aqui te respondo! Por favor, vem agora. 

Quando o capanga chegou, os dois começaram a entrar em cogitações.

--Não sei o que eu faço.  Um susto seria bom? -- perguntou Adriano.

--Se você quiser, eu posso dar um jeito mais...

--Não! -- o deputado fez um aceno negativo  com a mão e por momentos refletiu sobre como Rogério era burro.  --Você faz uma besteira dessas, eu sou o primeiro suspeito. Pior, o único suspeito!  E, na verdade, nem sei se eu teria coragem de fazer isso com ela.

--Um susto também vai criar problema, porque o pai dela é delegado...

--Veterano, perto de se aposentar, mas muito experiente...

--Então o que dá pra fazer?

Adriano baixou a cabeça longamente, refletiu e disse:

--Vou fazer outras investidas.  Fui um idiota. Não agi como um político que sou.  Vou fazer outros contatos com ela, pessoalmente, vou ser afável e convencer  ela a não ter esse filho.

--Mas e se ela teimar? -- indagou Rogério.

O outro passou as mãos pelos cabelos:

--Aí o jeito vai ser ensebar.  Não assumir a paternidade, exigir DNA e, no caso de ser meu filho, tentar dar a pensão mínima possível.

Não havia porém pra Adriano e Rogério, naquele momento, nenhum motivo de preocupação.  Sabrina saíra perturbada, descontrolada,  chorava abundantemente, soluçava, ofendia o namorado em pensamento, lamentava a própria condição de grávida rejeitada e, antes da chegada do motorista à casa do chefe, já deparara com um caminhão numa curva, entrara debaixo do veículo pesado, morrendo instantaneamente.



CAP. 6


Adriano soube da notícia pela irmã de Sabrina, ficou perplexo.  A inaceitação à gravidez  foi um segredo que ficou entre ele e a finada namorada.   Toda a família, entretanto, desconfiou, dadas as circunstâncias da morte, já que Sabrina não era incauta na direção.  

Fazia-se, no entanto, difícil inquirir o político. O impacto na família fora grande demais.  A mãe teve de ser internada em estado-de-choque, Nélson chorava  quase aos berros.  Tentou, no enterro, pressionar o parlamentar a dizer a verdade, mas o policial estava totalmente desprovido de condições emocionais e de energia. O político disse que aceitara a gravidez com alegria, mas Nélson não tinha forças pra questioná-lo.

O caso teve repercussão nacional, afinal era a namorada de um renomado político que morria, e Adriano, abatido pelo remorso, ainda deu entrevista.  A comoção da opinião pública fez dele um namorado amantíssimo,  afável e agora inconsolável, enlutado  e desalentado.  A história da gravidez nunca vazou para a imprensa. Na missa de sétimo dia, a família da moça não falou com Adriano, que ficou constrangido num canto, mas continuou a se reeleger, ganhando ainda maior projeção e respeito nos meios políticos, apesar de fazer parte da base de apoio a Michel Temer e depois de sustentação a Jair Bolsonaro. 

Nélson entrou numa grave depressão.  Tratou-se e afastou-se da bebida e das noitadas por mais de um ano.  A carreira política de Adriano Ferraz era um sucesso, os bacanais passaram a ser mais frequentes. Nélson matou-se com  um tiro na boca, no dia em que voltou a beber e que chegou a casa de táxi às oito da manhã, quando Adriano estava pelo início   do terceiro mandato.


Setembro de 2020



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