sexta-feira, 5 de junho de 2020

MILENA E O DIVÃ


Milena acomodou o corpo no sofá, cruzou as pernas.  A luz iluminava seu rosto ainda bonito de uma  mulher que estava por entrar nos cinquenta e cinco anos de vida.   Levou ela uma ponta de dedo ao queixo e observou: 
-- Não sei exatamente dizer se fui feliz  na minha vida emocional,  mas não me considero uma desgraçada.  Entretanto, acho que ainda faltou algo.   Alguma coisa a mais precisava ter vivido pra me sentir realizada na vida afetiva.
Diante dela a psicanalista, impassível, atenta.  A cliente prosseguiu:
-- Mas acho que valeu tudo o que vivi.  Não os dramas mais traumáticos, como a perda de meus pais, mas a maior parte do que vivi voluntariamente valeu a pena, sim.  Algumas decisões foram erradas, mas, como muito se propala, pude aprender com os erros.
“ Não tive grandes amores na adolescência, casei com vinte e dois anos, logo após me formar; mas não nutria grandes paixões por meu ex-marido. Talvez por isso a relação não tenha dado certo.”
-- Como era seu marido? -- indagou a profissional.
Milena permaneceu com o dedo abaixo do queixo de uma cor clara e  rosada, pensou por segundos, comentou:
-- Era um homem arrogante e prepotente.  Bem jovem, já era arrogante.  Eu já o conhecia por morarmos no mesmo bairro.  Talvez aquele jeito altivo, decidido, aquela personalidade forte tenha sido exatamente o que me atraiu nele... mas a convivência com uma pessoa daquele perfil é muito difícil.   Era dono da verdade, autoritário, pensava que podia me dominar.  Assim, o que antes mexia comigo, passou a ser motivo de degaste e apodrecimento da convivência.
-- Ele era violento?
-- Não... Isso não.  Ele não ousaria sê-lo comigo.  Passei a mantê-lo à distância quando ensaiou  algum gesto violento, e isso acabou por fazer que não houvesse mais cama entre nós.
-- Quanto tempo ficaram convivendo sem relações  sexuais?
-- Uns dois anos.  Eu sentia uma certa náusea de nos imaginar numa relação sexual.  Acho que logo ele percebeu isso... e passou a nem mesmo tentar.
-- O que ele fez  pra te causar essa repulsa?
--Uma vez me pegou pelo braço, ameaçando sacudir meu corpo.  Olhei-o com tal desprezo, mas com tanta firmeza e ódio, que ele suspendeu o gesto.  Mas me chamava de estúpida, gritava comigo, me humilhava, me envergonhava com seu jeito escandaloso. Tolerei durante muito tempo, foi um casamento de dez anos.  Mas depois refleti e considerei que não tinha dele dependência financeira nem afetiva, não sentia mais nada por ele.  Por que então continuar?
-- A separação foi traumática?
-- Não. Eu propus, e ele aceitou sem relutar.  Ele também queria a separação.  Não foi difícil.  Faltava-nos antes iniciativa, mas ambos queríamos.
-- Você teve filhos  com ele?
-- Não, não tive. 
-- Teve algum relacionamento sério depois do casamento?
Milena pensou longamente, tornou:
-- Sério, não sei... mas tive o poeta...
-- Poeta? -- repetiu a que entrevistava.
A cliente tinha o olhar distante, buscando trazer as cenas de outrora à memória:
-- Sim, poeta: ele fazia versos, muitas poesias. Era muito apaixonado, queria estar comigo a todo momento: ligava, me levava a passear, era entregue, dedicado, apegado.
--Pegajoso?
--Nao digo isso: tinha certo cuidado para não ser assim. Mas vivia contendo uma tendência nesse sentido.  Mas era devotado, muito presente, parecia que nada tinha a fazer além de ficar comigo.  Era como se na vida nada tivesse além de mim.  Ele me respirava, era como se se nutrisse da minha presença, da minha existência.  Era inteiramente meu. Ficou frágil, ciumento, inseguro e dependente.
--Como era a cama entre vocês?
--Ótima!  Nós nos afinávamos perfeitamente no aspecto sexual.
--Você o amava?
--Não. Tinha uma profunda estima, ternura, amizade, às vezes tinha vontade de protegê-lo...
--Mas isso não era amor?
--Não, não era. - A seguir Milena olhou para o longe com um ar reflexivo e os olhos brandos e como sorridentes: --  Amor arrebata, estonteia, atordoa, faz a gente perder a razão, agir tendo como único guia a emoção. A gente para de pensar,  e os sentimentos predominam: eles é que passam a decidir os nossos passos.
--Em algum momento da vida -- indagou a terapeuta-- você experimentou essas emoções?
--Não sei.  Acho que experimentei coisa parecida na adolescência; mas não tinha a intensidade de um amor.  Era quase um namoro de crianças.  Acho que era apenas uma fantasia, coisa de adolescente.  Não ficou marcado em mim.  Lógico! Faz tantos anos... Mas nunca marcou...
--Que fim levou o poeta?
--Precisei ir embora pro Rio Grando do Sul: tinha uma oferta melhor de emprego. O poeta ficou no Rio: não podia me visitar com frequência.  Achei que o relacionamento iria ficar pela metade: resolvi romper.  Ele sentiu muito, muito mesmo. Acho que quase enlouqueceu de tristeza.

II

MILENA

Vem de algum lugar, Milena, que meu canto te procura
Por todo beco,
Por todo canto
E pelas ruas , Milena, tão silenciosas;
Noites de frio
Que não revelam
A tua imagem.

Surge, Milena, assim de repente como fada;
Nasce de um clarão multicolorido de magia
E então flutua
Bem docemente
Ante meus olhos.
Vem, Milena, chega num relance de entre as nuvens;
Vem, que meus versos têm em ti sua nascente.
Chega antes que meu peito se transforme em  só cansaço,
Antes que meu verso cale, silencie,
E eu me torne folha seca  a vagar sem nenhum rumo.

1996

III

A psicóloga ajeitou-se no sofá onde se sentava, quis saber:
--Depois da partida não soube mais do poeta?
Milena sorriu:
--Algo em torno de dez anos depois, quando  tive problemas na empresa e voltei,  procurei por ele.
--Como ele reagiu?
--Ficou estupefato, numa surpresa que não sei descrever!  Numa alegria que nunca vi.  Foi uma coisa que jamais vou conseguir apagar da memória.
--Vocês voltaram?
--No mesmo dia em que nos reencontramos.
--E você percebeu se ele ainda tinha o mesmo sentimento por você?
--Não sei dizer, mas ele ficou muito eufórico, esfuziante, feliz demais!

IV

OUTRO CANTO A MILENA

Vem, Milena, ver a noite e suas luzes,
Fazer planos de um amor que nunca acabe.
Vem, porque jurar amor é qual cantar,
E, Milena, cantar é tão bonito,
É bonito como o encantamento dos teus olhos,
Quando sonhas debruçada na varanda.

Vem arder entre lençóis, quentes carícias,
Nossos corpos, qual vulcões ensandecidos,
Se espremendo numa fúria delirante
E na dança alucinada dos desejos.

Vem, Milena, ver cantar meus sentimentos,
Vem sentir o aconchego dos meus braços,
Vem fazer do meu abraço tua casa.
Tua casa, o teu canto é meu abraço.

2007

V

A psicóloga fitou Milena vagamente:
--Ainda assim você não ficou com ele?
--Não.  Os ciúmes dele pareciam ter aumentado.  Mas a entrega não me parecia mais a mesma. Acho que agora tinha medo de se dar como antes e me perder novamente.
--E acabou acontecendo, não?
--Sim. Mas daquela vez não fui eu que rompi.  Foi ele, que percebeu que eu nunca o tinha amado. Deixou-me um ano depois.  Nunca mais soube dele.


VI


ÚLTIMO POEMA A MILENA


Adeus, Milena, até nunca, nunca mais...
Nunca mais um verso te farei.
Até nunca mais, Milena, adeus.

Ainda que eu fosse o orador que mais brilhasse,
pelo inteiro mundo  minha voz fosse aclamada,
e as turbas me aplaudissem, fascinadas...

Ainda que eu cantasse a mais linda das cantigas,
e o fizesse de forma tão doce, tão sentida,
que levasse a prantear as multidões...

Ainda que eu aniquilasse os demônios do universo,
e cruzasse fronteiras minha fama de bravura,
e eu fosse aclamado do planeta o grande herói...

Ainda que eu não fosse nada menos que deus vivo
a operar milagres estalando os dedos simplesmente,
e os homens me louvassem em milhões de reverências...

Ainda assim eu teria o desdém desses teus olhos,
a tornar-me nada mais que um mero, simples verme.
A tua voz, sem calor ou sem doçura, então faria
De minh'alma nada mais  que escombros puramente.
Adeus, Milena, até nunca, nunca mais.
Até nunca mais, Milena, adeus.

2008


VII

--Em tua vida inteira,  Então, nenhum homem conseguiu te levar às nuvens de emoção...?
--Houve um, sim!
--Houve?
--Um que conheci no tempo em que trabalhei no Sul.  Era um cliente da empresa, Um gaúcho de olhar firme e penetrante.  Bem-sucedido, seguro, centrado, parecia de ferro. Um dia o recebi em meu escritório, pois ele permanecera na empresa até depois do expediente.
"A princípio conversamos sobre negócios, depois debatemos acerca de outros diversos assuntos. Acabamos falando em relacionamentos, amores, e, ao nos despedirmos, apertei-lhe a mão, depois tive o impulso de abraçá-lo, e aí aconteceu o que eu não planejara nem esperava. Ele me apertou nos braços, impetuoso, ardente, decidido, e quando me dei conta estávamos despidos e fazíamos amor no sofá de um modo quase selvagem.  Ele me fez sentir tão mulher, tão fêmea, fez de mim o que quis, me levou a orgasmos que antes eu jamais experimentara.  Senti-me ao mesmo tempo sua amada, sua rainha e sua vagabunda, mas muito candentemente desejada.  Foi uma loucura, uma grande loucura, poderia ter comprometido meu emprego e minha carreira, mas eu tinha enlouquecido."
--Por que não ficou com ele?
--Ele não podia: era casado.  E eu, por minha vez, não quis ficar como sua amante.  Seria difícil pra mim, pra ele, pra mulher dele.  Seria o inferno da vida de todos nós. Vivi muito intensamente aquele momento, mas não quis outra ocasião. Disse a ele que não queria mais.  Passei a evitar que ficássemos a sós, a conversar com ele somente sobre negócios.  Mas nunca mais vou esquecê-lo.
--Você sentiu amor por ele?
--Não, acho que não.  Mas nunca um homem me atraiu tanto nem ficou tão firmemente gravado na minha memória.  Nunca mais vou esquecer o mais pleno e magnífico affair de minha vida.
--Nosso tempo acabou. Volta semana que vem, no mesmo dia e horário?
--Sim, com certeza.

2017












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