segunda-feira, 30 de novembro de 2020

NAS ANDANÇAS DO PODER -- SEGUNDA PARTE: "O PASTOR"

 O PASTOR



Uma das coisas que mais  me assombram hoje em dia é o fato de, principalmente no Brasil,  Deus ter tantos servos, e a cada dia esse número de servos aumentar de forma impressionante.   Um pouquinho de retidão e de bondade, e o mundo, sobretudo nosso país, seria perfeito.

Mateus era um homem  que dedicava-se a pregar a palavra do Senhor Supremo.  Passava horas mortas dos seus dias a levar os ensinamentos bíblicos aos seus irmãos em Cristo, mas nem sempre dera-se a conduzir ovelhas ao Paraíso. 

Funcionário de  escritório de contabilidade, depois despachante, belo dia, numa inquietação e uma crise existencial que muito o agoniaram -- talvez pela mulher que poucas semanas antes o abandonara -- foi a um desses templos que mais pediam contribuições do que se preocupavam em salvar os pobres humanos de irem para o eterno fogo e eterna penúria do Inferno. 

E foi justamente para esse detalhe que Mateus muito atentou: a igreja fazia inúmeros cultos de uma hora, e a sacola, viva, dinâmica, assanhada, tremulando como bandeira,   fazia o seu trabalho impecável a cada um daqueles cultos.  Ficava o homem a considerar: quanto eles arrecadavam a cada dia?

Chegou a casa, ficou a perder-se em considerações.  Filho único, há poucos meses herdara do pai uma pequena casa construída num terreno de excelente tamanho.  Caberiam no espaço umas cinco ou seis casas do tamanho da que estava erguida no terreno.  Antes morava num apartamento minúsculo em Bonsucesso, mas o que vira fizera que uma inspiração divina o arrebatasse, e o despachante mudou-se para o Encantado,  comprou um monte de cadeiras de plástico, empilhou-as enquanto desfolhava a Bíblia e frequentava cultos e escolas dominicais, até que considerou-se habilitado a derramar sobre os desorientados pecadores do mundo Terra as bênçãos, ensinamentos  e pedidos de pecúnia corriqueiros nos lugares onde muito se levam espíritos à grandeza do Reino dos Céus.

Trabalho árduo o de Mateus.  Às 7 da manhã já estendia as cadeiras sobre o chão de cimento.  Às vezes só as recolhia lá pela meia-noite.   A princípio pensara em desistir: eram pouquíssimos fiéis, mas paulatinamente a plateia foi crescendo, crescendo, e o agora pastor chutou pro alto a profissão de despachante e deu-se exclusivamente a pregar a palavra do Pai Eterno.

A vida foi melhorando: comprou um carro, depois um outro mais novo.  A mulher que o deixara já não lhe representava mais nada: envolveu-se com uma bem mais jovem e mais bonita, desceu-lhe os vestidos do décimo primeiro dedo acima dos joelhos para o nível das articulações, fechou-lhe os decotes, fê-la converter-se e passou a apresentá-la como esposa.  Deu-lhe também um "livro sagrado", e os dois juntos passaram a transmitir aos humanos sem luz tudo o que Deus lhes queria e todos os projetos do Pai para aqueles desnorteados.

Muito embora gostassem, Mateus e a mulher,  de uma boa caipivodca, combinbaram nunca beber em público, mas em suítes de motéis quando se davam uma folga.  Regalavam-se do sexo e da bebida, era tanto frenesi, volúpia, tanta alegria, e às vezes Mateus, na infinita bondade que adquirira pela prática em lidar com as coisas de Deus, dava um drible na moça e proporcionava todos aqueles prazeres a alguma outra ovelhinha sem rumo que porventura olhasse-o nos olhos longa e profundamente.  Era sempre uma vítima de Satã que requeria-lhe uma atenção especial no templo -- que ia sempre em obra e sempre arrecadando muito -- e era atendida na plenitude da presteza a que só os mais abnegados e nobres pastores sabem se dar.

Após terminadas as obras de ampliação e embelezamento, Mateus foi aumentando seu patrimônio, tornando-se a cada dia mais abastado, influente e reverenciado pelos religiosos e não-religiosos, ou você já soube de as pessoas não se prostituírem  e se renderem ante o poder econômico?

O grande problema da ambição, entretanto, é que ela se torna doentia, e, quanto mais os poderosos têm poder, riqueza e prestígio, estes passam a viver quase que exclusivamente para ampliá-los  indefinidamente.   Daí a eterna exploração dos pobres pelos ricos, a concorrência às vezes desleal entre grandes empresas,  as guerras entre países porque seus estadistas querem ampliar seus domínios e seu poderio econômico e bélico, o que muito se parece com os embates igualmente sangrentos entre criminosos, todos sempre empenhados em tomar os feudos dos outros.  O poder, mais que demonizar, cega, e um empresário ou banqueiro, quando perde inteiramente a compaixão, converte-se num sociopata como qualquer assassino de fuzil nas mãos, com a diferença de que aquele (o empresário) mata pela fome decorrente das injustiças sociais que ajuda a produzir -- jamais, porém, sem a cumplicidade dos governantes e dos políticos, pois crime, poder (público ou privado) e religião são o triunvirato que sempre governou o mundo.

Um pastor da projeção de Mateus Fraga não poderia, nesse contexto, ficar de fora desse  trindade, e, ciente da receptividade que um aventureiro como o pastor teria ao que proporia, Rogério, o motorista-segurança de Adriano Ferraz, procurou-o a pedido do chefão do tráfico a que servira antes de tornar-se funcionário público não-concursado e detentor de cargo comissionado. 

Era uma tarde bonita de quarta, o carrão do ex-traficante parou diante da igreja de Mateus.  Este, que acabara de encerrar um dos cultos do dia, estendeu a mão a Rogério:

--Precisa de ajuda, irmão?

Rogério ficou a examiná-lo com os olhos por longos momentos, percebeu, com a vasta experiência que obtivera com o tráfico e com a política, o tipo de homem com que lidava:

--Boa tarde, pastor! -- respondeu num ar quase debochado -- Eu gostaria de conversar com o senhor, mas é uma conversa bem discreta e reservada. Eu queria um lugar onde a gente ficasse a sós.

Mateus chamou-o a entrar, conduziu-o para um canto bem  isolado da igreja, após verificar se  Monique,  a mulher, os via ou ouvia.  

--Território seguro. -- brincou o ex-despachante.

Rogério disse quem era, para quem agora trabalhava, a quem anteriormente servira, elogiou longamente Adriano e depois o chefe do tráfico a quem se dedicara  nas sombras, como assassino -- como aliás fizera para o deputado e o empresário que corrompera o político --, mas, obviamente, não comentou as façanhas realizadas: limitou-se aos elogios. Muito tempo depois entrou no assunto:

--O Edvaldo, meu camarada, é parceirão mesmo, é leal e tem palavra, e, se ele não fosse gente boa toda vida, eu nem procurava o senhor pra fazer a proposta.

--Pois diga, amigo: -- atalhou Mateus -- do que se trata?

--Tá bom, vou falar: ele investe a grana que ganha em vários negócios: tem motéis, restaurantes, termas... mas ele queria hoje investir dinheiro em outros negócios.

O pastor permanecia calado, apenas balançando a cabeça, o outro continuou:

--Pois é!  Ele queria abrir um ou dois templos em sociedade com o senhor, meu pastor.  Ele coloca os imóveis no seu nome, o senhor deixa assinado um documento de doação de metade do patrimônio pra um irmão dele, pro caso de vocês se desentenderem, pra não haver briga, e ele dá pro senhor dez por cento da verba que ele mandar pro senhor declarar como doação dos fiéis.  As doações são divididas entre vocês dois, e da verba dos negócios dele que o senhor esquentar o senhor fica com dez por cento, como já falei.

O pastor ficou a considerá-lo, calado, olhando-o firmemente: a seguir indagou:

--Mas por que logo eu?

--Porque sua igreja tá em franco crescimento. -- o mensageiro respondeu de pronto.

Mateus ficou a refletir, refletir, a olhar para o nada, até que de súbito propôs:

--Pra responder eu quero uma semana. Mas antes você vai me fazer um favor.  Vou querer conversar com seu amigo pessoalmente.  Mais: quero conversar com o deputado Adriano Ferraz!

Rogério sentiu-se um tanto desprestigiado:

--Pra responder o senhor vai precisar do aval do meu chefe? Eu não quero envolver ele nisso!

--Não, meu amigo! -- o pastor sorria -- Não é nada disso.  É que há muito tempo eu penso em entrar na carreira política.  Quero conhecer seu chefe pra ele me abrir as portas.

--Mas, como, pastor, ele vai abrir as portas sem conhecer o senhor?  Acho que só minha apresentação não vai adiantar.

Mateus continuou sorrindo:

--Não, amigo, uma coisa é você só me apresentar, outra é eu me dispor a investir na campanha dele em troca de apoio. Quero ser deputado estadual com o respaldo dele, depois eu me arranjo pra ser deputado federal.

Todos os acordos foram fechados, todos os negócios, realizados.  Adriano conheceu o pastor, bebeu com ele muito uísque e reelegeu-na na eleição seguinte com ajuda financeira de Mateus, que obteve apoio do deputado federal e do traficante Edvaldo para eleger-se estadual e, após o final do mandato, conseguiu uma cadeira em Brasília e abriu a sexta filial da igreja em sociedade com o  chefe de tráfico, que lhe dava não dez, mas quinze por cento  -- percentual conquistado pela barganha do pastor  --  do dinheiro que lavava nos templos do falso religioso .  Falso aliás como a maioria dos religiosos, a despeito dos que se envolvem em práticas criminosas.


Outubro de 2020









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