sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

SALU, O POLICIAL AZARADO

O detetive Salustiano tinha pela frente uma missão espinhosa: era preciso desbaratar a quadrilha do Ruindade, que era senhor supremo do Morro da Fome, onde vivia a traficar livremente as suas drogas: dvd's de novelas, de discursos políticos, de duplas sertanejas,  de seriados de tevê americanos, “funk”...
Ruindade governava o morro com mão de ferro e o auxílio de inúmeros meliantes. Para auxiliá-lo em sua “gestão”-- que, aliás, pretendia eterna – contava com o Conselho do Qualé, uma espécie de assembleia de bandidos que debatia e aprovava as diretrizes do chefão. As “sessões” do “conselho” eram bastante simples:
--Aí, malandragem, o papo é o seguinte: -- vociferava uma espécie de coordenador dos trabalhos de votação – vacilou, sífu! Falô?
--Falôôôôô! – a “assembléia” aprovava em coro.
Ou então:
--Aí, galera, a parada é a seguinte: não gostou, não concordou, a gente "passa". Falô?
--Falôôôôô! – ninguém era bobo de discordar.
Ou ainda:
--Seguinte, malandragem: o chefe "quereu", o malandro dançou. Falô?
--Falôôôôô!
A violência já se tornara rotineira, os tiroteios aconteciam com impressionante frequência, a quadrilha cobrava altos “impostos” e “pedágios” dos moradores para que eles apenas pudessem circular em seu próprio bairro, e a população era mantida naquela constante infelicidade.
--Que mais poderíamos esperar – reclamavam à boca pequena alguns insatisfeitos – se bandidos conduzem nossos destinos?
E esse é o panorama que encontrou o investigador Salu, que instalara-se incógnito no morro, alugando um barraco para moradia durante a missão.
Já presenciara algumas vezes, sem nada poder fazer, certas cenas de extrema perversidade. Uma delas se deu com uma velhinha, que, sem dinheiro para o pagamento do “pedágio”, caminhava amedrontada por aqueles becos periculosos. Não podendo conter o medo, a pobre, após quase meia hora por aqueles caminhos, dirigiu-se à casa de dona Isolda, matrona esotérica de alto gabarito.
Espírita, protestante, ocultista, católica, adivinha, Isolda era a guru espiritual daquelas bandas. A vidente concentrou-se por alguns momentos, indicou:
--Desenhe uma estrela-de-Davi na testa.
--Mas, senhora...
--Não discuta! Desenhe uma estrela-de-Davi na testa.
A velhinha obedeceu. `A medida em que ia fazendo o desenho diante do espelho, ia-se tranqüilizando. Quando terminou, observou:
--Gozado! Agora não sinto mais medo.
A vidente sorriu:
--O símbolo espanta os maus fluidos. Agora vá em paz.A velhinha agradeceu, saiu sorridente e serena, fechou detrás de si a porta da casa da religiosa, caiu durinha com um balaço bem no meio da testa.
--Bem na mosca! – vangloriou-se da própria pontaria um bandido que treinava tiro-ao-alvo – Minha mira é infalível.
Tão cruéis quanto o Ruindade eram os julgamentos que realizavam por ali. Os transgressores das leis do chefão eram conduzidos a uma espécie tribunal-quartel-general-esconderijo, e as sentenças eram, quase em sua totalidade, de morte. Um julgador vestido de preto, usando sobre as vestes uma enorme capa preta com uma estampa de caveira, além de um martelo improvisado (em que o cano do revólver era o cabo do martelo), batendo sempre a coronha na mesa, executava o seu “trabalho” com incrível rapidez. Quando punham diante dele o “réu”, este sempre sob a mira de uma ou mais armas, a coisa transcorria numa celeridade impressionante. Indagava o homem da capa preta:
--O que fez o sangue-ruim aí?
--Vacilou.
--Cerol nele!Levavam o infeliz para um canto do salão, queimavam-no vivo.
--Não suporto esse cheiro de carne queimada. – vez por outra o que julgava comentava.
Assumir as funções de julgador era algo que envolvia riscos, expunha às vezes a  vida do próprio, tanto que de vez em quando um morria quando batia a coronha na mesa, com um disparo acidental da arma.
Era preciso desbaratar aquela quadrilha que mandava e desmandava no Morro da Fome. Para começar, entretanto, a desmantelá-la, fazia-se necessário prender o seu líder, e de maneira astuciosa, já que este raramente se expunha. Um embate frontal era inviável. No último que houvera, a desvantagem da polícia fora incrivelmente gritante. Os policiais, armados de paus, pedras e estilingues, tentavam atingir os bandidos, que do alto do morro os alvejavam com granadas e balas de metralhadoras e fuzis AR-15. Não ficou um policial vivo, e aquele "status quo" continuou: aquela gente era governada por bandidos! Após algum tempo de investigação e de descobrir onde o bando se escondia, Salu ficou certa noite à espreita, armado, disposto a pegá-los de surpresa, quando os meliantes estivessem dormindo. Acordaria-os com arma apontada, rendendo-os sozinho e heroicamente. Levou horas para aproximar-se do Q.G. e o fez com todo o cuidado, com passos leves, cautelosos, e conseguiu chegar a tal ponto perto dos facínoras, que ouvia roncos nos cômados onde eles dormiam. Tudo teria corrido bem se não tivesse tropeçado num gato preto, que fez uma gritaria desgraçada e derrubou latas e quebrou garrafas por onde arrepiou carreira. As luzes do Q.G. se acenderam e o pouco sortudo Salustiano teve de copiar o gesto do gato, perseguido pelos tiros e pelos fora-da-lei.
Na segunda oportunidade, esta uma chance de ouro, pois o Ruindade, incauto como raramente, andava tranqüilo e sereno por entre as ruelas do morro. Salu seguia-o à distância e, sem ser ouvido ou notado, ia-se aproximando... aproximando... preparando o bote em que renderia o criminoso. Quando estava bem perto, todavia, deu o azar de pisar numa buzina abandonada, dessas de padeiro, com som que se emite a partir do fole de borracha, dessas que fazem fom-fom.. A buzina tocou e Ruindade já se virou atirando, e o investigador precisou pular de um pequeno penhasco, e caiu num lugar que ficava fora da vista e da mira do marginal, não sendo feliz por inteiro porque era um pequeno quintal onde havia dois ferozes cães da raça "pitty-bull". Correu com os cachorros em seu encalço e foi obrigado a executar outro salto de um outro pequeno abismo, caindo desta vez sentado sobre um canteiro repleto de pés de cacto. Foi doloroso e deprimente o nosso baluarte da lei correndo, pulando e gritando de dores nas nádegas crivadas de espinhos.
Após as duas frustradas tentativas, a maneira mais indicada que encontrou para continuar a sua empresa foi tentar infiltrar-se no bando, a princípio como uma espécie de missionário evangélico, pastor salvador de almas, coisa assim. Então, barbeou-se com esmero, trocou suas roupas desleixadas por um terno impecável, colocou no rosto um par de óculos e penteou os cabelos repartindo-os e formando um topete. Colocou uma bíblia sob o braço e rumou para o esconderijo.Não contava, porém, com o fato de que Ruindade, naquele exato momento, estava  reunido com seus comparsas e a dar-lhes instruções:
--Deve me procurar hoje por aqui, pra receber uma grana, um malandro que eu não tô nada "sastisfeito" com ele. Ele fazia uns contatos pra mim, recebia bagulho na fronteira, mas eu acho ele um pouco esperto demais, tá ligado? Ele vivia de contos-do-vigário, prestou alguns serviços pra mim, mas eu soube que andou me roubando. Por isso, quero que vocês "passa" o cerol nele, tá legal ?
--Quem é o cara? – quiseram saber.
--O Mauricinho, vocês conhecem?
Ninguém conhecia.Ruindade o descreveu:
--É um alto, moreno claro, anda sempre de terno, na maior beca(!), e usa óculos, cabelo repartido e anda sempre com uma bíblia embaixo do braço.
O chefão deu as instruções e despediu-se com um "tô saindo". Mal saiu, ouviram-se três pancadinhas na porta e entrou Salu saudando os sujeitos:--Que a paz do Senhor esteja convosco...
A resposta foi o levantamento dos fuzis e das metralhadoras, o bastante para o policial meter sebo nas canelas.
--Mata esse malandro! – ainda ouviu antes de os tiros espoucarem.
Corria por entre os becos, escondendo-se, os bandidos em seu encalço. Encontrou uma janela aberta e pulou por ela para dentro da casa, caiu sobre a cama de uma morena de incendiar a carne, que dormia vestida apenas de uma camisola transparente.
Ela acordou num sobressalto:
--O que é isso??!
Ele tapou levemente a boca da mulher:
--Por favor, não grite: eles tão querendo me matar.
--Eles quem?
--Os homens do Ruindade
.--Do Ruindade??
--É! Por que o espanto?
--Porque eu sou a mulher(!) do Ruindade.
Salu moveu-se para voltar a pular a janela, ela o segurou:
--Calma! Mas eu vou te ajudar! – e o conduziu até um outro cômado, do lado oposto da casa, indicou uma outra janela para o policial pular, mas antes de ele fazê-lo a janela se abriu e surgiu um brutamontes, que no primeiro momento sorriu para a mulher:
--Querida... – mas ao perceber a presença de Salu, tornou-se ruborizado e furibundo: -- Sua desgraçada!! Você me trai!!
Partiu para a direção do detetive, e surrou-o com uma fúria pra corno violento nenhum botar defeito. Enquanto Salustiano apanhava, Sônia, a morena, se vestia com incrível rapidez, e parecia que o grandalhão nem sequer a via. Quando terminou de se vestir, foi até embaixo da cama, pegou um penico de ágate e sapecou na cabeça do agressor. O brutamontes caiu nocauteado, Sônia voltou a puxar o investigador pela mão, os dois agora conseguiram pular a janela e sair correndo.
--Mas você não é mulher do Ruindade? – indagou Salu enquanto corriam.
--Você nunca viu uma mulher ter amante? – ela esclareceu.
Foram acolhidos por dona Isolda, a médium católica, protestante, kardecista, macumbeira, sei lá mais o quê, que, após dar-lhes água gelada e deixá-los relaxar, ouviu toda a história e explicou a Salustiano:
--Forças astrais negativas vivem acompanhando você. Você não pode vestir qualquer cor, tem que só usar branco – enfiou-lhe pela cabeça vários cordões de contas, de aço e ainda uma enorme figa – e usar toda essa proteção. Além disso, deve raspar a cabeça, deixar crescer o bigode e a barba, para afastar de si os espíritos inferiores que se mantêm em seu derredor por acharem você parecido com eles quando tinham os corpos físicos.
O investigador acatou as orientações da esotérica, sobretudo porque precisava não ser reconhecido pelos homens do traficante, o que lhe permitiria mais uma vez tentar infiltrar-se na quadrilha.Sônia mudou-se para um bairro distante, onde passou a receber quase diariamente a visita do obsediado (ou ex-obsediado). Queixara-se a princípio de ele haver-lhe complicado a vida com aquela involuntária indução do seu ex-amante ao equívoco, mas, após muitos pedidos de desculpas e demonstrações de elevação moral do detetive, acabou foi na cama com ele, numa esfregação gostosa como o quê.
Só uma coisa ficara a martelar na cabeça de Salu: como aqueles bandidos ficaram sabendo quem ele era e a que vinha? Mal sabia ele que jamais fora descoberto por eles, mas apenas vítima de uma infeliz coincidência.
Mais problemas, no entanto, ainda estavam por vir. Numa bela tarde, o meliante Ruindade, entristecido, comentava com seus cúmplices sobre o abandono da bela Sônia:
--Ela sumiu assim, de repente, sem quê nem porquê. E olha que eu gostava daquela danada! Ela não tinha motivo pra me deixar... Não consigo entender... Só se foi macumba... É isso mesmo: macumba... É isso mesmo! –exaltou-se – Macumba! Só pode ter sido macumba! –Virou-se para os companheiros, num estalo de decisão: -- O primeiro de vocês que matar um macumbeiro, vai ganhar uma grana preta! Tá prometido! Uma grana preta pra quem matar um macumbeiro!
Dois dias depois, o nosso representante da lei, já com a barba crescida, a cabeça raspada e os seus balangandãs, tomava uma pinga numa birosca do morro, quando um dos malfeitores o avistou e gritou já com a arma em punha:
--Oba! Um macumbeiro!
Salu, com o copo na mão, não teve tempo de sacar o seu revólver. O único ato que lhe ocorreu foi jogar em cima do sujeito o resto da pinga que bebia. O sujeito largou a arma e levou as mãos ao rosto molhado pela cachaça, caiu e ficou a urrar e a contorcer-se de dor. Uma semana depois, o bandido era visto por Sônia na porta de uma igreja, bengala, óculos escuros e chapéu estendido, cego, rosto marcado por queimaduras e a pedir esmolas.  Que cachaça aquela do Salu, não?!
O policial não entendia. Quem o estava traindo? Dona Isolda? Sônia? Que diabos! E antes de conhecer as duas, quando se vestira de apregoador evangélico, quem o traíra? Ora, que diabos! Não! Definitivamente não podia confiar em ninguém! Por isso sumiu do alcance dos olhos das duas mulheres, não lhes deu mais notícias e a ideia de um novo disfarce iluminou-lhe a mente: mulher! Isso mesmo! Um disfarce de mulher! Peruca loura, vestido comprido, meias de náilon, batom, busto falso, "blush" para disfarçar a marca da barba e do bigode raspado e pronto! Aproximar-se-ia do traficante, seduzi-lo-ia e, na hora de os dois se despirem, poria a arma em punho e a apontaria contra a cabeça do infame. Não havia como dar errado.
Mas deu. No dia em que encontrou Ruindade próximo ao seu Q.G. e ficou a lançar-lhe sorrisos e olhares concupiscentes, o malfeitor franziu a testa apurando a visão e disse:
--Tu não é mulher nada! Tu é um travesti! Tu é a Monique, traveco da Lapa que um dia me entregou à polícia... – e voltou-se para os seus homens: -- Fogo nele, moçada!
Não é preciso dizer que mais uma vez o nosso bravo investigador teve de correr por aqueles becos, perseguido pelas rajadas, tiros e por um monte de delinquentes.
Após safar-se, recolheu-se em casa, transtornado, ficou longos momentos a refletir. Repentinamente levantou-se, resoluto, arrancou peruca e vestido, procurou a arma na cintura e descobriu que a perdera. Mas não desistiu. Saiu andando em passos rápidos, sem peruca e com o rosto ainda maquiado, além das meias-calças sob o short. Andou com passos rápidos, firmes e decididos, chegou ao quartel-general e, antes de abrir a porta com um pontapé, gritou:
--Ruindade! Seu filho da p...! Sou Salustiano da Silva, policial! Entendeu bem: policial! E vim te prender!
Entrou. Passou por todos os outros facínoras, que ficaram a olhar para ele quedados, incapazes de qualquer gesto... de qualquer ação. Postou-se diante do líder, que também o olhava boquiaberto.
--Vou te encher de porrada, seu filho da p...!!!
E desceu o cacete no malandro!
Ruindade foi recolhido ao xadrez. Julgado e condenado, foi transferido para uma penitenciária de segurança máxima. O ato heróico de Salu tornou-se o ato de maior vulto já conhecido no Morro da Fome.
Alguns meses depois, um homem passava um recado a outro:
--O chefe tá chamando.
O homem chamado correu, atropelando tudo o que havia à sua frente, temeroso de que o tal chefe se irritasse pela espera. Tanto ele quanto o que o chamara haviam sido capangas do Ruindade. Entraram ambos na fortaleza que pertencera ao agora presidiário, colocaram-se respeitosa e reverentemente diante de um elegante e altivo Salu, que, de braços dados com a gostosíssima e não menos elegante Sônia, principiou a dar as suas ordens:
--O negócio é o seguinte: eu quero que vocês passem o cerol num mané que andou vacilando....

fim
Escrito em 1996, atualizado em 2010

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